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Como Stanley Kubrick usou o acaso e o imprevisto em seus filmes

Homenageado em documentário exibido no Festival de Cannes, cineasta é tema de livro do crítico francês Michel Ciment

Por Martim Vasques da Cunha
Atualização:
'Laranja Mecânica', clássico de Stanley Kubrick inpirado no romance distópico de Anthony Burgess 

Quando Stanley Kubrick morreu, em 7 de março de 1999, aos 70 anos, três dias depois de terminar De Olhos Bem Fechados, o primeiro adjetivo que pipocou nos obituários foi “perfeccionista”. O próprio Kubrick já avisara que essa classificação não passava de “uma tendência jornalística a utilizar a palavra para me agredir, o que me parece fácil”. Não, caro Stanley, não se trata apenas de uma manha de redação para garantir mais leitores ou de uma estupidez qualquer a ser dita em uma mesa de bar. É simplesmente uma mentira.

A obsessão de Kubrick nunca foi o controle de cada detalhe da obra ou a perfeição dos enquadramentos simétricos, como sugerem os clichês sobre sua personalidade. Era com o acaso e a beleza inesperada que nascia do seu peculiar método de trabalho. Esqueçam as anedotas sobre as cem vezes em que obrigou um ator a repetir a mesma cena; ou a exigência dele ao pedir que uma determinada lente fosse criada para que pudesse filmar somente à luz de velas – uma audácia técnica que tornou possível a iluminação única de Barry Lyndon (1975). Tudo isso contribui para o charme da lenda, mas prejudica a compreensão de uma das maiores filmografias da história.

Stanley Kubrick em imagem extraída do livro do crítico francês Michel Ciment 

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Sua atitude tinha semelhanças com a do músico francês Pierre Boulez. No ensaio Alea (publicado em 1964, ano em que o cineasta lançava Dr. Fantástico, comédia sobre o apocalipse nuclear), ele descreveu a busca pela verdadeira surpresa, não por meio do “acaso por inadvertência” ou “por automatismo”, e sim numa absorção espontânea do aleatório que faria a obra de arte superar o intelecto e provocar uma comunicação intuitiva que permitiria ao espectador entender a intenção original do artista.

Naquela época, Boulez tinha suas obsessões particulares – a filosofia oriental e a poesia de Mallarmé –, mas não seria exagero dizer que o mesmo princípio se aplicava ao diretor nova-iorquino. Quando jovem, Kubrick preocupava-se somente com três atividades que envolviam o acaso: o xadrez, o jazz e a fotografia. Seria um erro pensar que o jogo era outra forma de demonstrar controle sobre o oponente. Muito pelo contrário: para Kubrick, o que lhe interessava no xadrez era o cálculo das probabilidades, dentro de uma determinada estrutura (o tabuleiro e as peças), e como ele poderia surpreender a si mesmo em uma situação inusitada. O jazz atingia níveis extremos de improvisação, mesmo determinada pelas notas ou acordes, o que lhe permitia perceber o instante mágico em que ficava nítida a ousadia do compositor. E, na fotografia, a procura pelo “momento decisivo” (termo de Henri Cartier-Bresson) no gesto ou olhar de uma pessoa era similar à busca da “verdadeira surpresa” de Boulez. Isto significava, para um inquieto como Kubrick, aceitar o real em sua deliciosa imperfeição – como ele fez com suas fotografias premiadas que lhe valeram uma contratação na prestigiosa revista Look, no início da década de 1950, antes de se aventurar no cinema.

Kubrick criou uma lente especialmente para rodar as cenas à luz de velas em 'Barry Lyndon' 

Apesar de serem considerados dois artistas “cerebrais”, tanto Boulez como Kubrick eram “anti-intelectuais” por excelência, segundo a visão que tinham de si mesmos. Não queriam agradar seus pares porque a única coisa que os interessava era dialogar com a própria realidade, principalmente por meio de suas obras. Por isso, é muito divertido ler as análises dos filmes de Kubrick, em especial dos críticos que se dizem seus admiradores, pois não apreendem a emoção secreta que há em cada plano e assim transformam o cineasta em algo distante do que ele era no seu dia a dia.

É o que acontece no livro Conversas com Kubrick (que será lançado em agosto com novo título pela Editora Ubu), do crítico francês Michel Ciment, uma referência para os fãs do criador de 2001 – Uma Odisseia no Espaço (1968), Laranja Mecânica (1971) e O Iluminado (1980). Por mais que Ciment alcance a complexidade da obra kubrickiana com o uso de teorias filosóficas e citações acadêmicas, tudo isso cai por terra quando lemos o que o próprio cineasta diz sobre seus filmes ou como ele trabalha. Perguntado se ele imagina uma cena de antemão, Kubrick mostra o seu pragmatismo no set de filmagem: “Pouco importa se você pensou durante muito tempo em uma cena, se a preparou exaustivamente, quando chega a hora de filmar e os atores estão com os figurinos, você olha para o cenário, e se lembra das coisas que já fez, isso é sempre diferente de todos os planejamentos que você pôde fazer, de tudo o que pensava fazer.”

Cena de 'O Iluminado', filme inspirado no romance homônimo de Stephen King 

O que temos aqui é um artista prático, que controlava todos os aspectos dos seus filmes para manter a integridade pessoal diante das surpresas do acaso e também porque desejava que a película desse lucro aos estúdios que o financiaram. Ele sabia que, em geral, os executivos de Hollywood não entendiam nada sobre o gosto do público – e tinha a plena noção de que cabia ao artista, mesmo em um meio comercial como o cinema, impor a sua preferência e jamais seguir a dos outros.

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Anos depois, Ciment voltaria a perguntar se ele planejava a escolha de um tema ou de um livro na hora de filmar. Resposta: “Nunca tenho a menor ideia de qual será meu próximo filme; não tenho um método sistemático de leitura. Acho, então, que a melhor coisa a fazer é ler ao acaso.” Para ele, encontrar uma boa história era “como procurar alguém por quem se apaixonar. Não há muito a fazer a não ser ficar com os olhos bem abertos.”

É esta “extrema atenção” que o faz ficar próximo de Ortega y Gasset. No ensaio La Caza y los Toros, o filósofo espanhol parte de um simples fato social do passado – o hábito da caçada como jogo que revela a capacidade humana de controlar ou dominar a natureza violenta –, para afirmar que a própria existência humana é uma contínua perseguição em que devemos estar constantemente alertas para caçar a essência das coisas reais.

O uso do simbolismo da caçada explica o motivo do verdadeiro tema nos filmes de Kubrick – “a falência da comunicação” entre os seres humanos, como o próprio disse a Ciment – ser tratado sem nenhuma espécie de frieza intelectual. O cinema, para ele, era uma caça contra e, ao mesmo tempo, a favor do acaso e da aleatoriedade. A perfeição, se existe, é capturada após muita perseverança. Neste sentido, Kubrick é semelhante a um cineasta também acusado de perfeccionismo, Robert Bresson, que escreveu certa vez que, numa filmagem, “nada pode acontecer de inesperado que não seja secretamente esperado por você”.

É por causa deste segredo que a resposta do público e da crítica é polêmica. Para se entender a obsessão de Kubrick com a incerteza, deve-se olhar atentamente para o final de O Grande Golpe (1956), em que o imprevisto destrói as intenções do plano criminoso de Sterling Hayden; para a alegria agridoce que surge na canção declamada pela jovem e bela alemã Christiane Harlan (futura sra. Kubrick) no comovente final de Glória Feita de Sangue (1957); para a dor contida, prestes a explodir, na fantástica sequencia da morte do filho de Barry Lyndon; e para a cena derradeira de toda uma vida, quando Nicole Kidman diz a Tom Cruise, após as aventuras oníricas em De Olhos Bem Fechados, que eles precisam urgentemente “f...”.

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Aqui, o “perfeccionista” faz o caos surgir com uma risada irônica. Talvez tenha sido o seu último conselho – ou o seu último recado? – para um público que acreditava que ele não era muito preocupado com essas coisas do coração. No fim, o que Stanley Kubrick criava não era uma arte voltada para aqueles que queriam “ensinar os pássaros a voar”. Era a música do acaso, a caçada em busca de uma autêntica surpresa que nos permitiu vê-lo como ele sempre quis: igual a um enigma.

*Martim Vasques da Cunha é autor de 'Poeria da Glória – Uma (Inesperada) História da Literatura Brasileira (Record) e 'Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide)

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