Composição 'secreta' que Pierre Boulez fez aos 19 anos será gravada

Maestro já disse ser fundamental que um artista 'esconda suas primeiras tentativas e destrua seus traços'

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Por Seth Colter Walls
Atualização:

Certa vez o compositor e maestro Pierre Boulez escreveu ser fundamental que um artista criativo “esconda suas primeiras tentativas e destrua seus traços”. Ao tirar de circulação alguns trabalhos dos seus anos de aprendizado, Boulez mostrou que pretendia seguir seu próprio conselho. 

Pierre Boulez em foto da década de 1950 Foto: Israel Shenker/The New York Times

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Mas ele não destruiu tudo. Confiando uma partitura escrita quando jovem – concluída em 1944 quando tinha 19 anos e jamais apresentada publicamente – para a Paul Sacher Foundation da Suíça, este defensor do modernismo que faleceu em 2016 deixou aberta a possibilidade de seus primeiros traços serem descobertos.

Após revisar a partitura de Prélude, Toccata et Scherzo, o pianista holandês Ralph van Raat convenceu os herdeiros de Boulez e a Sacher Foundation a autorizarem a apresentação da peça pela primeira vez na Philarmonie de Paris, em setembro passado. A estreia da obra foi tão bem sucedida que novos concertos foram marcados.

Quando ouvi van Raat tocar a peça de 20 minutos no Weill Recital Hal do Carnegie Hall, em outubro, enviei um e-mail para ele querendo saber sobre a sua abordagem da obra, antes da gravação dela para o selo Naxos, planejada para 2020. Abaixo, trechos da nossa conversa.

Quando viu pela primeira vez a partitura, você teve a sensação de descobrir um “Boulez secreto”? Naturalmente fiquei bastante surpreso quando a vi, no aspecto romântico. Mas ao mesmo tempo ela me explicaria, ou até provaria, como, o que era básico para mim, a primeira e a segunda Sonatas (de alguns anos depois) eram obras extremamente românticas. Naturalmente elas contêm elementos racionais, todos sempre falam desta parte racional delas. Mas ao mesmo tempo, os grandes intervalos, são para mim muito expressivos. Mesmo que ele tenha escrito: “destruir completamente toda a beleza dos sons”, é muito romântico pensar nisto. Quero dizer, é um pouco agressivo, mas é também romântico. Muitas emoções. Acho que Prélude, Toccata et Scherzo prova que isto fazia parte da sua personalidade. Este aspecto hiper-dramático.

No Carnegie Hall você se referiu ao primeiro movimento como tendo a influência de Bartok. Mas então, ouviu algum Messiaen no meio do movimento? Messiaen usava tipos irregulares de ritmos. Subtraía ou adicionava batidas para ficar mais interessante. É o que Boulez faz no meio da composição. Eu acho bastante interessante, porque Boulez é conhecido como um compositor que insere um elemento racional nas suas composições. Para algumas pessoas é uma espécie de frieza – talvez objetividade fosse melhor. Mas algumas indicações reveladoras que Boulez usa no primeiro movimento são “três expressif” (muito expressivo), “doucement triste” (suavemente triste) e “comme une plainte qui s’exaspère” (como um lamento que se intensifica). E é fantástico, quase expressionista. Depois que essa intensificação é realçada, o início retorna com grande pompa – tudo é duplicado. É quase uma virtuosidade tradicional, que vemos em Liszt e Rachmaninoff. O uso de todos os registros do piano ao mesmo tempo. Muito orquestral. Notas estranhas, mas o sentimento, sem dúvida, é romântico.

O que você ouve no segundo movimento? Acho que o segundo movimento já antecipa o futuro Boulez. É mais difícil de compreender, porque parece um pouco improvisado, e também por causa da estrutura. Você tem algumas passagens com notas simples que precisa tocar rápido, com as mãos se alternando. E durante todo o tempo essas toccatas são alternadas com partes de fuga. Do mesmo modo que as fugas tradicionais que Bach compunha, mas num sistema de 12 tons. Mais para o final ele chega a esta teia complexa de motivos que fazem parte da tocata e da fuga. E todos estes motivos são reunidos uns sobre os outros e isto soa de modo completamente aleatório. Nesse momento, quando como ouvinte você se perde, ele retoma alguns destes temas importantes em oitavas, de modo que você tem alguns indícios. E sente que “ah agora eu entendo. Eles estavam perdidos em todas aquelas texturas atonais complexas”.

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E no terceiro movimento? O que acho fascinante é que ele já comporta aqueles gestos agressivos de Boulez. É muito agudo e aguçado e bem mais do que em qualquer outro movimento. Mas o que é muito interessante são os intervalos que ele usa: muitos acordes de sétima maiores e menores empilhados uns sobre os outros. Isto me lembra muito o jazz contemporâneo. Provavelmente Boulez não concordaria com isto. Mas gosto muito. 

Como você está tocando uma peça que ele nunca publicou, qual é a sensação de liberdade como intérprete para discordar de Boulez após sua morte? Ele não quis publicá-la, é verdade. Mas a guardou, por alguma razão. Talvez para estudar em algum momento. Assim, quando perguntei aos herdeiros e ao pessoal da Sacher Foundation se poderia tocá-la, eles responderam: “Sim, mas basicamente por razões de estudo. Pode tocá-la uma vez, apenas para que as pessoas possam ouvi-la”. Mas depois, eles quiseram mais uma apresentação e ainda uma terceira. Ao ouvi-la, eles concordaram que realmente é uma excelente peça e muito informativa. Você percebe nestes três movimentos que ele está buscando, encontrando seu caminho. Mais tarde fica tudo mais cristalizado. Mas gosto muito desta peça, como ouvinte e como pianista. Compreender Pierre Boulez já é muito difícil. Adoro as suas obras. Reconheço que são difíceis. Gostaria muito que, nesta peça, as pessoas percebam os mesmos princípios que ele usou mais tarde, mas de maneira mais clara. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO 

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