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Confissão involuntária

Mentir ou dizer a verdade? O dilema aflige todos, não apenas o milionário Robert Durst, que pode ser condenado à morte após admitir crimes na TV

Por Sérgio Telles
Atualização:

Robert Durst, 71 anos, é o filho mais velho de um bilionário dos negócios imobiliários de Nova York. Aos 7 anos presenciou o suicídio da mãe, que se atirou do teto da casa onde moravam. Tornou-se um rapaz solitário e de temperamento difícil e foi preterido pelo pai, que escolheu seu irmão Douglas para suceder-lhe na direção dos negócios, fato que levou Robert a manter uma luta ininterrupta com os familiares por meio de processos judiciais e ameaças de agressões físicas e morte. Em 1982, sua mulher, Kathleen McCormack, desapareceu após 9 anos de um casamento tempestuoso. A polícia suspeitou que Robert a tivesse assassinado, mas não pôde provar, pois o corpo nunca foi encontrado. Em 2000 as investigações foram reabertas, e Susan Berman, a melhor amiga de Robert, foi assassinada em Los Angeles pouco antes de testemunhar sobre o caso. Mais uma vez as suspeitas recaíram sobre Robert, mas, como não havia evidências que o incriminassem diretamente e Susan Berman era filha de mafiosos, levantou-se a hipótese de que ela poderia ter sido vítima de uma vendeta entre gangues. Assediado pela polícia e pela imprensa, Robert escapa de Nova York e se estabelece em Galveston (Texas), onde, de forma bizarra, se faz passar por mulher, e um mulher muda. Ali, em 2001, mata e esquarteja um vizinho, Morris Black, colocando seus restos em sacos de lixo que joga no mar. Indo a julgamento, diz que havia matado acidentalmente o amigo e tentara se livrar do corpo por temer que não acreditassem em sua versão dos fatos. Seus advogados alegaram legítima defesa e o júri o absolveu.

Microfone traiçoeiro capturou inconfidência do assassino Foto: Edmund D. Fountain/The New York Times

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Nos Estados Unidos, a história de Robert Durst é bem conhecida e nestes últimos 30 anos tem sido vasculhada pela imprensa, por policiais, advogados e curiosos. Mais recentemente, deu origem a dois episódios do seriado de televisão Law and Order e ao filme Entre Segredos e Mentiras(All Good Things – 2010), do cineasta Andrew Jarecki, autor do premiado documentário Na Captura dos Friedmans (Capturing the Friedmans – 2003), que registra os infortúnios da família de um pedófilo.

Durst emocionou-se às lágrimas ao ver o filme de Jarecki e o procurou em 2012, dispondo-se a lhe dar uma entrevista aberta, na qual apresentaria sua versão dos fatos. Esse encontro deu origem ao seriado The Jinx: The Life and Deaths of Robert Durst, produzido pela HBO. As filmagens terminaram em 2013 e somente agora o seriado foi lançado. O último dos seis capítulos foi ao ar na semana passada nos Estados Unidos, menos de 24 horas depois da prisão de Durst em New Orleans. 

Sua prisão possivelmente ocorreu em função de dados novos trazidos pelas investigações do documentarista e por um acontecimento inesperado. Numa das últimas entrevistas, Durst, que tem o hábito de falar sozinho, foi ao banheiro com o microfone ligado e disse claramente: “Que diabos eu fiz? Matei todos, é claro”. 

Jarecki descobriu essa gravação acidentalmente meses depois de realizada, ao ser repassado o áudio do seriado, e a entregou à polícia, que ficou com ela por um longo tempo, tomando providências apenas na vigência do final do seriado. A coincidência levantou suspeitas de manipulação para fins publicitários, hipótese negada por Jarecki.

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Chama a atenção que Durst tenha de moto-próprio se oferecido para dar uma entrevista sem restrições a Jarecki. Ficara tocado pela forma sensível com que ele ficcionalizara alguns aspectos de sua vida em All Good Things. Sentira-se compreendido, tratado como um ser humano com graves problemas, e não como uma aberração repugnante. De fato, Jarecki declarou que procurou mostrar Durst tal como fizera antes com os Friedmans, sem tratá-los como a encarnação do mal, e sim como pessoas que se viram em circunstâncias adversas muito peculiares. Como cada um de nós agiria se estivesse em seu lugar? Tal atitude deve ter baixado as defesas de Durst, dando lugar ao desejo secreto de confessar aquilo que negara sistematicamente por tantos anos. É aí que acontece um espetacular ato falho – no meio da entrevista vai ao banheiro, “esquece” o microfone ligado e, em solilóquio, confessa os crimes. 

É uma demonstração da teoria psicanalítica que estabelece a existência da dimensão inconsciente do psiquismo, em permanente conflito com os valores racionais e conscientes. Coerente com o objetivo de escapar da prisão, Durst nega os assassinatos e se diz inocente. Inconscientemente, deseja confessar seus crimes e receber a punição. 

Enquanto o senso comum afirma que a culpa se instala depois da realização do crime, Freud diz que muitas vezes a culpa o antecede. O indivíduo pratica o crime para ser punido e assim aliviar uma culpa inconsciente preexistente. 

Mentir ou dizer a verdade. Esse é um dilema que nos aflige a todos, não apenas a Durst. É por isso que Derrida afirma que a fé não diz respeito ao divino, e sim ao humano. É preciso ter fé na palavra do outro, crer que ele vai falar a verdade ao invés de mentir e enganar, possibilidades sempre presentes. Daí a transcendente importância do testemunho, condição na qual a palavra equivale a provas materiais. 

SÉRGIO TELLES É PSICANALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE VISITA ÀS CASAS DE FREUD E OUTRAS VIAGENS (EDITORA CASA DO PSICÓLOGO)

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