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Conheça o lado literário das canções de Nick Cave

Músico toca em São Paulo e exibe seu repertório com influências de poetas como W. H. Auden e Federico García Lorca

Por Martim Vasques da Cunha
Atualização:

Com a óbvia exceção de Franz Kafka, o cantor e o compositor australiano Nick Cave é o melhor escritor de inícios literários nos últimos tempos. Quem pode superar começos como “Não acredito em um Deus intervencionista, mas eu sei que você sim, querida”, “Assim que sentei tristemente ao seu lado, ela acariciou o gato no colo e vimos juntos o mundo passar”, ou “Você desabou do céu e caiu em um campo perto do rio Adur”? Cada verso aqui é extraído dos primeiros versos dos seguintes álbuns – The Boatman Call (1997), No More Shall We Part (2001) e o mais recente, Skeleton Tree (2016) – e neles percebemos um artista raro, que consegue passar a sensação de uma tragédia iminente, deste abandono terrível do qual, cedo ou tarde, o universo será o palco em nossas vidas.

Cena de 'One More Time With Feeling', filme que registra a gravação do disco 'Skeleton Tree' Foto: Bad Seeds Ltd

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A única diferença é que, se Kafka fez isso em contos e romances, Cave fala sobre o mesmo assunto em seus discos, na maioria gravados com a banda que o acompanha há mais de 30 anos, os Bad Seeds, e com quem se apresenta hoje, 14, no Espaço das Américas, em São Paulo. Apesar de ser uma celebridade de rock, ele trata as suas canções como os poetas W. H. Auden e Federico García Lorca – atento às minúcias e delicado nas metáforas, mas sem deixar de lado o gosto por imagens violentas ou por um sentimento de desamparo que permeia suas melodias, sejam elas extremamente barulhentas ou extremamente suaves e etéreas. Auden e Lorca não são referências aleatórias. Cave os cita em um ensaio da década de 1990, A Vida Secreta da Canção de Amor. Ali, afirma que toda grande letra do cancioneiro do rock – do qual fazem parte Leonard Cohen, Bob Dylan, Joni Mitchell e Van Morrison – depende de uma experiência extrema de trauma ou abandono metafísico para meditar sobre o único assunto importante em qualquer tipo de arte: a “saudade” (sim, em português) que temos do amor divino.

Para Cave, tanto Auden como Lorca refletiram obsessivamente sobre isso em suas obras poéticas. Ele faria o mesmo não só em seus álbuns, mas no romance A Morte de Bunny Munro (2009) e no longo e divertido poema The Sick Bag Song (2015), sem excluir o cinema, ao fazer a trilha sonora de clássicos modernos como O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2007), de Andrew Dominik, ao roteirizar o filme The Proposition (2005), de John Hillicoat, e ao refletir sobre sua arte poética (e a própria vida), com os memoráveis documentários 20.000 Dias na Terra (2014) e o dilacerante One More Time With Feeling (2016).

Contudo, é na sua discografia que Nick Cave se revela na sua plenitude e desenvolve de forma radical a “saudade” por um amor divino que o abandonou há muito tempo. Se antes ele abordava isso como um mero “choque estético” – evidente em canções empolgantes no início da sua carreira, como The Mercy Seat –, com o passar do tempo torna-se algo cada vez mais palpável. Nos álbuns Abbatoir Blues/ The Lyre of Orpheus (2004) e Push the Sky Away (2013), Cave se vê como o vate grego Orfeu, que vai ao submundo para resgatar sua amada Eurídice, mas acaba perdendo-a porque ele não escuta o conselho da deusa Perséfone de não olhar para trás, faz exatamente isso e assim se transforma em uma estátua de pedra. Só que, desta vez, o Orfeu personificado por Cave decide continuar no Hades, na certeza de que o céu do Olimpo está cada vez mais ausente e que a “saudade” é a única companheira dos seus versos.

Esta certeza se acentuou de vez quando Cave foi obrigado a sofrer a experiência extrema do trauma, no pior evento que um pai pode ter: a morte de Arthur, seu filho de 15 anos, no dia 14 de julho de 2015, vítima da queda de um penhasco na cidade inglesa de Brighton. A partir desse evento, o abandono deixava de ser um “choque estético” – e a saudade, ah, a saudade era algo muito real, insuportavelmente real. De repente, Orfeu tornou-se a própria estátua de pedra, enterrado no poço mais profundo do Hades. Para escapar desta armadilha do destino, Cave não teve outra solução exceto fazer o que sempre fez: cantar. Despedaçado, conseguiu criar uma obra-prima deste inferno particular – o álbum Skeleton Tree que, em conjunto com o filme One More Time With Feeling (dirigido pelo amigo Andrew Dominik), mostrou a sua nudez existencial, não como a lenda do rock que conhecemos, mas sim como o homem comum que tenta encontrar algum sentido diante de uma tragédia.

Nestes dois reflexos da sua alma dilacerada, Cave deixa de ser Orfeu e, talvez sem o saber, começa a imitar o papel de Dante Alighieri, o criador de A Divina Comédia. Ele já estava no inferno, mas para chegar ao paraíso (do qual só tem o vislumbre), atravessou o purgatório – algo que ainda pode durar alguns anos. O céu continua distante, alheio ao que acontece com um pai que perdeu o filho, mas pelo menos ele está lá, indispensável com suas estrelas. De Orfeu abandonado, Nick Cave tem agora a chance de, aos poucos, se transformar no poeta que finalmente aprende que, neste mundo, “nada é de graça”. Para quem foi de uma excelência ímpar ao conceber inícios memoráveis, seria um alento ele ter enfim um recomeço, ao fazer as pazes com a saudade que sempre perseguiu. *Martim Vasques da Cunha é autor de 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' e 'A Poeira da Glória - Uma (Inesperada) História da Literatura Brasileira' 

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