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Coronavírus: como a literatura retratou as epidemias virais

A ficção científica se preocupa com os surtos de doenças desde o século 19, e nunca se falou tanto sobre o tema na literatura como hoje

Por Silvia Moreno-Garcia e Lavie Tidhar
Atualização:

O surto de coronavírus parece coisa de romance de ficção científica – ou de horror. De fato, há séculos os romancistas vêm imaginando cenários como este. Um dos primeiros romances de peste foi escrito por ninguém menos que a madrinha do gótico, Mary Shelley. Em The Last Man [O Último Homem] (1826), Shelley vislumbra uma Terra pós-apocalíptica, devastada pela peste no final do século 21. Os sobreviventes americanos invadem a Europa e a humanidade quase se extingue. No final, o “último homem” está à deriva, tentando chegar à Grã-Bretanha em um barquinho.

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Os romances pandêmicos, assim como as próprias pandemias, vêm e vão em ondas. Os anos 1960 tiveram O Enigma de Andrômeda, de Michael Crichton. Os anos 70 viram o megassucesso de A Dança da Morte, de Stephen King. Robin Cook nos deu Vírus nos anos 80. Na década de 2000, Guerra Mundial Z e O Guia de Sobrevivência a Zumbis, de Max Brooks, foram considerados representações tão plausíveis de cenários de emergência que Brooks agora presta consultoria a militares. E, em 2014, Estação Onze, de Emily St. John Mandel, sobre uma praga mortal chamada Gripe da Geórgia, dominou as listas de prêmios.

Com o coronavírus na cabeça de todo mundo, a leitura de livros sobre epidemias pode ser um escapismo assustador ou um fascinante experimento sobre os “e se” do futuro. Para os (destemidos) leitores desta última categoria, duas escritoras de fantasia e ficção científica falam sobre livros que valem a leitura.

Brad Pitt protagoniza adaptação de 'Guerra Mundial Z', tão realista que Max Brooks chegou a prestar consultoria a militares Foto: Paramount Pictures

Silvia Moreno-Garcia: Embora os zumbis agora sejam sinônimo de pandemia, existem vários romances que evitam esse popular motivo narrativo. Survivor Song [Canção do Sobrevivente], de Paul Tremblay, foi lançado em julho e fala de um vírus semelhante à raiva, com um curto período de incubação. Quando conversei com ele, na convenção de Boskone, ele me disse que sua irmã, que é enfermeira, o ajudou a dar forma às suas ideias sobre como os serviços de saúde poderiam lidar com esse cenário. Paul foi chamado de “a mais nova grande novidade do horror”, então vale a pena dar uma olhada. Um dos melhores livros sobre pandemia não-zumbi é Pontypool Changes Everything [Pontypool Muda Tudo]. Dizem que todo romance canadense fala ou sobre o clima ou sobre a paisagem hostil, e este livro fala tanto disso quanto de um vírus que é transmitido via linguagem e faz com que as pessoas virem canibais. Sim, o romance mistura sátira social e comentário político, mas é um belo conceito.

Lavie Tidhar: Eu adorei Pontypool, a adaptação cinematográfica do romance. É claro que um vírus de linguagem já tinha aparecido em Snow Crash – Nevasca, de Neal Stephenson, o livro que efetivamente encerra a era do cyberpunk. Mas são dois romances muito diferentes. Um romance que me vem à cabeça é o épico de Kim Stanley Robinson, The Years of Rice and Salt [Os Anos do Arroz e do Sal]. Ele toma a Peste Negra do século 14 como um ponto de partida, mas imagina que ela mata quase todo mundo na Europa. Como seria a história do mundo, então? Contado ao longo dos séculos que se seguiram, por meio de uma série de personagens reencarnadas, o livro imagina um império chinês, de um lado, um mundo islâmico, do outro, e uma aliança da Índia com as nações indígenas americanas, todas lutando pelo domínio do mundo. É um livro encantador e envolvente.

Silvia: Eu li Snow Crash – Nevasca quando era adolescente e também adorei Eu Sou a Lenda, de Richard Matheson (o cara solitário que tenta sobreviver enfrentando um bando de mutantes toda noite!). Imagino que os jovens de hoje possam gostar mais de Wilder Girls [Garotas Selvagens], de Rory Power – sobre adolescentes em quarentena em um internato – do que de Matheson, por causa das cenas de horror.

Lavie: Meus livros de peste favoritos são mais de ficção científica. Alastair Reynolds tem alguns ótimos digitais – a “peste fundida”, possivelmente alienígena, que acaba com a “Chasm City” no romance homônimo, e o “nanocausto” que destrói todos os registros humanos em Century Rain [Chuva do Século]. Ambos são ótimos romances de ficção científica, com uma atmosfera meio noir, mas bem diferentes um do outro. Eles também levantam uma questão importante sobre o futuro da humanidade: ao replicarmos a linguagem dos vírus, das infecções e da rápida distribuição em larga escala em nossos sistemas digitais, estamos nos tornando vulneráveis a uma nova forma de pandemia? E, à medida que ficamos cada vez mais integrados às nossas próprias máquinas digitais, estamos nos colocando em cada vez mais risco? Imagine quando não apenas as pessoas, mas também as casas, os carros e até os reatores nucleares puderem ser vítimas de infecções. Pode parecer coisa de ficção científica, mas, caso você ainda não esteja muito preocupado, fique sabendo que pelo menos um worm de computador de origem militar, o Stuxnet, infectou os computadores do programa nuclear do Irã em 2010. A ficção está correndo para tentar acompanhar a realidade.

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Silvia: Um dos mais arrepiantes livros de ficção científica sobre peste é Clay’s Ark, de Octavia Butler. Embora tecnicamente faça parte de uma série, ele pode ser lido por si só. A história segue uma família sequestrada por um grupo de pessoas infectadas com um micróbio alienígena que altera radicalmente os seres humanos e os pressiona a reproduzir e espalhar sua infecção. O livro começa meio Mad Max e vai virando A Experiência. Um aviso: ele vem com todas as questões espinhosas sobre coerção que Butler gostava de explorar. Não é uma leitura leve. É, definitivamente, uma leitura assustadora. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU*SILVIA MORENO-GARCIA É AUTORA DOS ROMANCES ‘GODS OF JADE AND SHADOW’, ‘SIGNAL TO NOISE’ E ‘UNTAMED  SHORE’.

*LAVIE TIDHAR É AUTORA DE ‘THE VIOLENT CENTURY’, ‘A MAN LIES DREAMING’, ‘CENTRAL STATION’ E ‘UNHOLY LAND'

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