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Crítico literário reconta a história da humanidade pela via da escrita

'O Mundo da Escrita', de Martin Puchner, mostra como a literatura foi fundamental para a formação do mundo como ele é

Por Paulo Nogueira
Atualização:

Nós somos, enquanto espécie, tarados por histórias. Histórias que lemos, vemos, ouvimos, que contamos aos outros e a nós próprios, sobre os outros e sobre nós próprios, para explicar o mundo e seus mistérios, ou simplesmente por diversão. Mesmo quando o corpo vai dormir, a mente fica acordada a noite inteira, de olhos esbugalhados, contando histórias para si mesma. 

O Romance de Genji', redigido no século 11 pela japonesa Murasaki Shikibu, é tido como o primeiro romance da literatura universal Foto: DE AGOSTINI PICTURE LIBRARY

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Em O Mundo da Escrita: Como a Literatura Transformou a Civilização, Martin Puchner, professor em Harvard, descreve ab ovo a conexão umbilical entre o humano e as narrativas, com uma erudição límpida, mas nunca rasa ou rala. Eu, que não sou de fazer média e acabei a leitura com 20 páginas de notas, considero-o desde já um dos livros do ano. 

Na capa, uma citação marqueteira diz que esta obra é “o ‘Sapiens’ para fanáticos por livros”. Talvez um mero pensamento mágico da editora, para que o produto venda tanto quanto a coqueluche do israelense Yuval Noah Harari (2 milhões de exemplares). Mas há um paralelismo: Puchner tem uma pegada também arqueológica, e igualmente divide sua obra em quatro partes, cujos cenários visita.

A primeira é o advento da escrita e o monopólio dos escribas sobre as compilações das narrativas orais. Convém realçar que a literatura propriamente dita é texto, cuja criação se alimenta de si própria, em seu próprio ato. Foi apenas quando a narração se engastou na escrita que a literatura nasceu – e durou: “Enquanto eram somente faladas, as línguas morriam quando seus falantes desapareciam. Mas, depois que as histórias foram fixadas na argila, as línguas persistiram”. Assim, o texto manteve vivinha da silva (mesmo que hibernando) até uma língua que ninguém entendia patavina: o acádio do épico Gilgamesh, cujos caracteres cuneiformes relatam a narrativa literária mais antiga de todas.

Alexandre, o Grande, o macedônico que irrigou o mundo com a cultura grega, batia perna com dois objetos de que nunca se separava, nem mesmo quando dormia: um punhal e um exemplar da Ilíada de Homero (com anotações do seu professor Aristóteles). As obras homéricas surgiram antes do texto. Mesopotâmicos e egípcios engendraram a escrita, mas ela era pior que letra de médico, por usar signos que copiavam significados – portanto, quase infinitos. Só os escribas tinham saco (e mordomias) para esses símbolos – daí que “hieróglifo” signifique “escrita sagrada”. Mas aí os fenícios (onde hoje é o Líbano) cortaram o laço entre o sinal e o sentido, criando o alfabeto, que usa o som, a fonética gerando semântica. Como ninguém é perfeito, se esqueceram de um pequeno detalhe: as vogais. Resultado: toda palavra parecia um neologismo de James Joyce. E foi então que os gregos chegaram chegando, com seu caminhão de a, e, i, o, u. Com apenas 24 letrinhas, continuam pontificando até hoje. 

De repente, alguns textos se transfiguraram em Escrituras Sagradas, estabelecendo um vínculo entre comunidades, exigindo serviços e rituais que iam do culto ao preparo dos alimentos. “Também mantinham viva a língua dos exilados, como o hebraico. Importantes para os reis, os textos fundamentais eram ainda mais importantes para um povo sem reis e sem império. A ideia da escrita sagrada tornou-se central não só para o judaísmo, mas também para o cristianismo e o islamismo, as chamadas religiões do livro”. Junto com o cristianismo, nascia em Roma o códice, que empilhava folhas de pergaminho entre duas capas. Tchau, rolos de pergaminho (que em geral continham várias obras), oi livro enquanto objeto singular, correspondendo a um único título e um único autor. 

Puchner enche a bola de três mulheres. Uma é Murasaki Shikibu, a japinha que escreveu o primeiro romance da literatura universal (chupa, querido Cervantes!), no ano 1000 e lá vai pedrada. É um nome especulativo, retirado de um dos personagens de “O Romance de Genji”, narrativa torrencial com quase 2 mil páginas. 

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Como em outras sociedades medievais (mesmo no século 21), o contexto de Murasaki reservava aos homens privilégios como o acesso à escrita de origem chinesa, com as grandes tradições reverenciadas na corte. No entanto, ela aprendeu-a clandestinamente, sapeando as lições que seu irmão recebia. Quando o pai soube daquele perigoso talento, choramingou: “Que azar ela não ter nascido homem!” Por isso, Murasaki usou um código diferente para o Romance de Genji: a escrita kana, autorizada às mulheres e criado para veicular outra importação chinesa: o budismo. 

“Genji” é uma guloseima verbal que em mil anos não ganhou uma ruga. Já esgrime um dos trunfos supremos da literatura: o acesso à mente dos outros. Se o cinema ou o teatro tentam fazer o mesmo, precisam recorrer à verbalização em voz alta, ao som, o que destrói o caráter secreto e privado da consciência. De certa forma, posso dizer que conheço melhor Molly Bloom do que a minha própria mãe, pois nunca circulei na psique desta, acessando às suas lembranças meio apagadas, ou às coisas que ela preferia não contar nem para si mesma. É por essas e por outras que, em seu discurso de agradecimento ao Nobel, o compatriota Yusunari Kawabata considerou Murasaki “o expoente máximo da literatura japonesa”.

A segunda mulher é Sherazade, que conta As Mil e Uma Noites e virou o arquétipo do narrador. Trata-se de uma compilação do folclore indiano, persa e árabe, fixada em texto numa edição do século 9, incluindo narrativas icônicas como Aladin, Sinbad e Ali-Babá. Sherazade engana o rei, um feminicida em série, contando-lhe a cada dia uma história eletrizante, cujo desfecho ela regateia. Clássicos europeus como Chaucer e Boccaccio deram uma gulosa filadinha nas Mil e Uma Noites. Orhan Pamuk, o Nobel de literatura de 2006, confessou a Martin Puchner o quanto as aventuras de Sherazade o influenciaram. 

A segunda parte de Pucher reside no que ele chama de “literatura dos professores”, paradoxalmente criada por mestres que revolucionaram o mundo em textos fundamentais, mas nunca escreveram uma vírgula: Buda, Confúcio, Sócrates e Jesus Já na terceira fase floresceram autores turbinados por inovações sucessivas como o papel e a impressão (ambos inventados na China), e a produção editorial e alfabetização cada vez mais massivas. Cervantes entre em cena com seu maluco beleza. 

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“Foi com Cervantes que a autoria contemporânea – da gráfica e o mercado, até a propriedade intelectual, o plágio e a pirataria literária – se juntaram como nunca antes. “ Baita novidade, e é por isso que em espanhol romance é “novela” (em inglês, “novel”). Num piscar de olhos, Dom Quixote (um romance contra os romances de cavalaria, assim como Madame Bovary será contra o romance cor-de-rosa) se tornou um precoce best-seller, traduzido rapidamente (Shakespeare, que morreu no mesmo dia que Cervantes, inspirou-se no Cavaleiro da Triste Figura para uma peça hoje perdida). 

Começavam então os petelecos entre os autores das obras e os que controlam as máquinas que as difundem, cada vez mais caras e de difícil operação, e por isso mesmo inacessíveis aos escritores. E a etapa seguinte é quando o Estado monopoliza a edição. 

No dia 28 de agosto de 1844, dois jovens racharam uma conta no Café de la Régence, em Paris: Marx e Engels. Quatro anos depois, saía o Manifesto Comunista. “Manifesto” era uma palavra nova para um tipo de texto, e foi lido por um certo Vladimir Ulianov, exilado em Zurique, que o traduziu rapidinho para o russo, assinando com o nome de guerra: Lenin. Vizinho de Lenin, do outro lado da rua, morava o romeno Tristan Tzara, que amou a ideia e tascou seu próprio manifesto, mais maluquete, inventando o Dadaísmo. 

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Nos estados totalitários do século 20, a impressão era prerrogativa do regime. Assim como ficar de butuca sobre os escritores – sempre subversivos potenciais, ao assinalarem que o mundo não está pronto (e nunca estará). Na URSS, a poeta Anna Akhmatova jamais fizera xixi fora do penico politicamente, mas sua ficha policial tinha 900 páginas. O marido dela fora executado, sob acusações forjadas. O filho definhava sob torturas no Gulag. A qualquer momento, um verso errado podia significar pelotão de fuzilamento. Por isso, ela passou a decorar cada poema que terminava, e queimava o papel em que fora escrito. O poema mais longo era a obra-prima Réquiem, e Anna precisou compartilhá-lo com dezenas de amigas – cada uma memorizou uma parte. E assim o texto sobreviveu por décadas. Nos anos 1960, começou a circular em forma de samizdat, a rede de literatura clandestina mimeografada. Quando Akhmatova morreu, sua obra-prima continuava inédita em sua terra natal. Com o fugaz degelo pós-Stalin, ela foi autorizada a receber um prêmio literário no estrangeiro, e em Paris aproveitou para matar as saudades do pintor Modigliani, de quem fora amante e que lhe fizera um encantador desenho. Morrendo em 1966, não viu seu protegido Joseph Brodsky ser banido da URSS em 1972, nem quando ele ganhou o Nobel de literatura em 1987.

Em 1532, quando o imperador inca Atahualpa pegou o livro que o espanhol Francisco Pizarro lhe entregou, não soube o que fazer com ele, e jogou-o ao ar. Ironicamente, também Pizarro era analfabeto. Já os maias inventaram uma escrita e uma literatura que durou dois mil anos, mas só foi decifrada recentemente. No século 20, o supremo clássico maia, Popol Vuh, serviu de inspiração para os textos incandescentes do subcomandante Marcos, que no estado mexicano de Chiapas liderava a chamada revolução zapatista. 

Na última seção, Puchner destaca os textos que fixaram identidades nacionais – no século 20, quando os estados europeus perderam o controle sobre suas colônias, miríades de novas nações nasceram da noite para o dia, e o número de países quadruplicou. 

Na liliputiana Santa Lucia, ilhota caribenha de 160 mil habitantes, Puchner visitou o mais ilustre nativo: Derek Walcott, Nobel em 1992. Em Omeros, o mulato Walcott descreve os conquistadores espanhóis, a chegada dos escravos africanos e até a cultura mandinga. Ele morreu pouco depois da visita de Puchner, mas teve tempo de evocar ao autor de O Mundo da Escrita um dia inesquecível. Foi aquele em que, no terraço da sua casa, o próprio Walcott, e os também nobelizados Seamus Heaney (irlandês) e Joseph Brodsky (russo) emborcaram uns gorós e jogaram conversa fora. “Falamos de tudo, menos de literatura”. 

Nesta época digital, em que a literatura pode ser ameaçada ou robustecida pela Internet (os ebooks, a autopublicação e a Wikipedia, mas também a pós-verdade e as fake news), Puschner conclui de modo ao mesmo tempo empolgante e lúgubre: “A lição mais importante é que a única garantia de sobrevivência é o uso continuo: um texto precisa permanecer relevante para ser traduzido, transcrito e lido pelas gerações para persistir no tempo. É a educação, e não a tecnologia que vai assegurar o futuro da literatura”. Com a palavra, nós.

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