PUBLICIDADE

Da impossibilidade de esquecer

Anistia não pacificou a família brasileira, como previam os militares

Por Glenda Mezarobba e Paulo Sérgio Pinheiro
Atualização:

Há três décadas a mesma história se repete, com periodicidade e intensidade variadas. Mais uma vez, acirra-se o debate em torno da Lei da Anistia e dos crimes cometidos pelos organismos de repressão das Forças Armadas entre 1964 e 1985. A explicação para esse contínuo retorno de demandas por justiça, referentes ao desrespeito de direitos fundamentais durante a ditadura militar, é simples. Elas não vão desaparecer enquanto não se descobrir o paradeiro dos desaparecidos, não houver um pedido de perdão e uma declaração oficial de culpa. No Brasil, como se sabe, apesar do reconhecimento da responsabilidade do Estado em 356 casos de mortes e desaparecimentos, e do pagamento de reparações aos familiares dessas vítimas, a partir da Lei 9.140, promulgada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, em 1995, e de outras leis que se seguiram, o paradeiro das vítimas fatais permanece desconhecido. E continuam mudos os responsáveis pelas instituições que cometeram os crimes, recusando-se a revelar a verdade sobre o que ocorreu no passado. Ao sancionar a Lei da Anistia, em 1979, o governo do general João Baptista Figueiredo pretendia colocar um ponto final na questão das punições infligidas aos opositores do regime e aos perseguidos políticos. A lei, diziam os militares, vinha para "pacificar a família brasileira". A ênfase estava no esquecimento. Trinta anos se passaram e essa intenção revelou-se um fracasso rotundo. É impossível esquecer a anistia! Ainda que por motivos distintos, os desdobramentos se deram de forma muito parecida entre aqueles que estiveram diretamente envolvidos na questão. Permanentemente assombrados pela ameaça de reconstituição do passado, os militares continuam mostrando-se os mais interessados em não lembrar os crimes ocorridos a partir de 1964, evidenciando que ainda hoje não lhes foi possível esquecer. Da mesma forma, a necessidade de recordar, movida por reivindicações nunca atendidas, verdades desconhecidas e pelo desejo de que o sofrimento não mais se repita, tem oposto as vítimas do arbítrio e seus familiares à possibilidade de olvidar. Vivemos em pleno século 21, em um momento em que o respeito aos direitos humanos está intimamente vinculado à definição de Estado democrático. A comunidade internacional fez decisivos avanços em direção ao reconhecimento de que o legado de graves e sistemáticas violações daqueles direitos gera obrigações aos Estados, em relação às vítimas e às sociedades. Tais deveres são pelo menos quatro e consistem em: 1) investigar, processar e punir os violadores de direitos humanos; 2) revelar a verdade para as vítimas, seus familiares e toda a sociedade; 3) oferecer reparação adequada; 4) afastar os criminosos de órgãos relacionados ao exercício da lei e de outras posições de autoridade. Essas obrigações têm respaldo na legislação internacional de direitos humanos e no direito internacional humanitário, e em nossa região, nas decisões da Comissão e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sendo que o enfoque principal está nos direitos e nas necessidades das vítimas. Logo, não é possível insistir na vigência da interpretação de uma lei de anistia que impede a investigação de graves violações de direitos humanos e crimes cometidos contra a humanidade - caso dos sequestros, homicídios e ocultação de cadáveres, praticados por integrantes das Forças Armadas, das polícias militares e civis durante o regime militar, que se enquadram em normas do direito internacional, vigentes já na época do golpe de Estado. Até agora, os avanços observados no processo de acerto de contas do Estado brasileiro com as vítimas da ditadura couberam ao Executivo e ao Legislativo. Apesar de alguns (sérios) equívocos na elaboração da legislação que sustenta o esforço reparatório, foram iniciativas desses dois poderes que permitiram a expansão das fronteiras legais da anistia, com o reconhecimento da responsabilidade do Estado nas mais graves violações de direitos humanos do período (as mortes e os desaparecimentos) e o pagamento de indenizações a ex-perseguidos políticos que conseguiram demonstrar suas perdas econômicas, sofridas nos anos de arbítrio, pelo governo anterior e pelo atual do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Tal legislação reiterou princípios como o da continuidade do Estado, segundo o qual novos governantes herdam a responsabilidade legal de seus antecessores, desde a época em que determinada violação ocorreu e até que seja declarada ilegal. Outras duas instituições ainda não desempenharam o papel que lhes compete em uma democracia: o Judiciário e as Forças Armadas. Da primeira se espera, sobretudo, o enfrentamento do aspecto criminal da questão - cabe assinalar que, no final de 2002, o STJ desconsiderou a imposição quinquenal prescritiva para casos em que se postula a defesa de direitos fundamentais e reconheceu a imprescritibilidade do crime de tortura, em uma ação indenizatória por danos morais movida por um militante de esquerda preso e torturado em meados da década de 70 no Paraná. Às Forças Armadas não resta outra opção a não ser abrir logo os arquivos e revelar a totalidade dos fatos ocorridos, permitindo à sociedade reconstruir sua própria história. Com o reconhecimento dos crimes do período, e a explícita manifestação de ruptura com tais práticas do passado, terá de vir um pedido de perdão. Às vítimas, seus familiares e a toda a sociedade. Só assim teremos a certeza de que se consolida a opção pela democracia e vivemos em um país em que todos têm os mesmos direitos (o que abrange o acesso à Justiça) e deveres. E que todos, inclusive o Estado e especialmente seus governantes e agentes, respondem por seus atos. *Glenda Mezarobba é pesquisadora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp e autora de Um Acerto de Contas com o Futuro: A Anistia e suas Consequências (Humanitas/Fapesp); Paulo Sérgio Pinheiro é pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência e professor de relações internacionais da Brown University, EUA. Foi secretário de Estado de Direitos Humanos do governo FHC DOMINGO, 1.° DE MARÇO Em busca de respostas O ministro dos Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, quer mandar uma grande missão ao Araguaia atrás de ossadas de guerrilheiros mortos na ditadura. Já Franklin Martins, da Comunicação Social, lançará campanha publicitária com familiares de desaparecidos políticos.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.