Da massa vieste, para a massa voltarás

Movimentação de prefeitos em Brasília mostra que os políticos, no fundo, são bem parecidos com o eleitorado. 'E assim nossa democracia avança', diz Reis

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Por Flavia Tavares
Atualização:

Foi em 1998 que, pela primeira vez, mais de mil prefeitos brasileiros se mobilizaram para ir à capital do País reivindicar mais recursos e diálogo com o Executivo federal. Desde então, a Marcha dos Prefeitos foi ganhando corpo e repercussão, até que, em 2009, o governo se antecipou: realizou essa semana o primeiro Encontro Nacional de Novos Prefeitos e Prefeitas em Brasília, recebendo milhares deles, e seus respectivos, em um evento que ganhou contornos de festa e campanha. O presidente Lula e sua equipe, ministra Dilma Rousseff à frente, anunciaram uma série de medidas para os municípios, que ficaram conhecidas como "pacote de bondades". Críticos do governo se alvoroçaram e reagiram ao clima de palanque, enquanto um conhecido cientista político brasileiro sugeria calma aos arroubos da oposição. "A iniciativa de chamar os prefeitos para o encontro é benigna. Essa aproximação do governo federal com o municipal cria uma estrutura de Estado mais equilibrada", argumenta Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em entrevista ao Aliás. Embora Reis admita que o comparecimento expressivo de prefeitos ao encontro se deva à elevadíssima popularidade de Lula e às tais bondades que seriam distribuídas, ele lembra que é assim que se tem feito política no Brasil já há algum tempo. "É um longo processo de amadurecimento. Mas não se pode negar que, numa democracia eleitoral, os políticos agirão sempre visando às próximas eleições", explica. Na conversa, o professor e autor de Política e Racionalidade (UFMG) disseca a forma brasileira de transformar a política cotidiana em avanços institucionais. O que esse encontro do presidente Lula com milhares de prefeitos diz a respeito da nossa política atual? Essa iniciativa é, primeiramente, uma resposta à Marcha dos Prefeitos, que representava uma insatisfação no nível municipal com o acesso às verbas, a eficiência da chegada de recursos aos municípios, etc. O governo fez um esforço para antecipar e, de certa forma, cooptar essa demanda. Do ponto de vista político, isso pode ser visto de maneira benigna. A conexão com os municípios pode ser boa no sentido de colocar várias políticas em prática mais efetivamente. Por exemplo, há a experiência com o Bolsa-Família, em que o Executivo federal e o municipal de fato se articularam. Há um velho diagnóstico da política brasileira de que o governo central seria o lado forte e os governos locais e regionais, o fraco. Mas há análises recentes que destacam como houve proximidade entre essas esferas, criando uma estrutura de Estado mais equilibrada. Houve um comparecimento maciço dos prefeitos a esse encontro, o que parece demonstrar a capilaridade do poder de Lula. O senhor concorda com essa visão? Uma face óbvia desse clamor dos prefeitos ao Lula é o apoio popular de que o presidente desfruta. Ter 84% de aprovação é beirar a unanimidade. Isso tem a ver, em boa medida, com o fato de que Lula faz um bom governo. Além disso, há as características e a trajetória pessoais do presidente. É uma figura que tem background autenticamente popular e foi propelido a uma carreira político-partidária até chegar ao topo. Isso pode nos remeter a análises relacionadas ao populismo? Em termos clássicos, essas análises destacavam o fato de as lideranças populistas serem de elite e lançarem mensagens para o eleitorado popular, havendo aí um forte elemento de fraude. Podemos contrastar isso com o novo populismo latino-americano, que em vários casos, inclusive no de Lula, envolve lideranças de origem popular. Isso não elimina inteiramente o aspecto fraudulento - Hugo Chávez, Evo Morales, Rafael Correa, têm seus truques e o próprio Lula deve ter os seus. Pode-se falar de alguma autenticidade desses líderes, que fazem uma redistribuição econômica efetiva. Em decorrência disso, nesses países que surgem no noticiário como turbulentos, tem havido um crescimento forte do apoio à democracia. Veja, essa redistribuição pode ser incipiente. Mas a democracia eleitoral é redistributiva por natureza. Ela cria um processo no qual os líderes, para serem eleitos e reeleitos, dependem de ter sensibilidade aos interesses do eleitorado majoritário. Não é justamente isso que gera o clientelismo do qual não conseguimos nos livrar? Certamente, há um componente negativo nisso, de motivação eleitoral mais imediata. Ou eleitoreira, melhor dizendo. Mas é importante destacar que o conceito de conexão eleitoral envolve uma concepção realista do processo político que liga a vida dos parlamentares ao interesse deles na eleição. Há sempre esse componente de barganha. Isso quer dizer que o toma-lá-dá-cá é inerente à política? Na democracia político-eleitoral, sim. E num país como o nosso, em que o eleitorado é precariamente educado e desatento à política, não há razão para presumir que o povo vá se orientar com alguma sofisticação na hora de votar, avaliando os políticos a partir de um diagnóstico preciso do País. Isso é papo de intelectual. E não é assim em lugar nenhum do mundo. Com isso, as grandes mudanças institucionais são postas de lado? Esse é um dos problemas com essa dinâmica. Se você é sensível ao eleitorado, e ele está pouco atento a questões mais profundas, a coisa tende a ser mais imediatista. É um desafio para o estadista responder às demandas do eleitor e, ao mesmo tempo, fazer obras de longo prazo, tanto no plano da administração socioeconômica quanto no das reformas institucionais. Temos respondido a esse desafio? É raro você ter uma figura que tenha estatura para juntar as coisas. E, aliás, não é uma questão de uma figura, ou duas, ou três - é um processo gradativo. Ilusão pensar que uma reforma institucional mais sólida seja um processo rápido. Trata-se de um amadurecimento que toma gerações. Mas o Brasil está nesse caminho? Sem dúvida. Confrontemos a situação de hoje com a que desembocou em 1964. Tivemos pelo menos meio século de turbulências, não podíamos apostar em nenhum tipo de estabilidade e, portanto, de construção institucional efetiva. Agora, temos quase três décadas de um processo institucional que se consolida. Fica claro que, na experiência recente, temos as instituições em operação. O fato de termos crises e sermos capazes de processá-las institucionalmente é a melhor indicação de que estamos avançando. O senhor acha que os políticos têm colocado interesses miúdos acima do interesse pelo bem comum? Enquanto se faz o feijão com arroz, o jogo miúdo dos interesses, é porque as coisas estão tranquilas institucionalmente. O processo institucional vai ser bem construído quando, em vez de se colocar a tarefa de reformas profundas, possamos contar com os interesses miúdos que estão em jogo no dia a dia para legislar realisticamente. O importante é tentar realizar avanços graduais que sejam viáveis, sem criar confrontações que possam gerar instabilidade. Em vez das reformas que passam a limpo o País, você poder fazer o jogo cotidiano avançando aos poucos, com uma legislação eficiente. E como ficaria a reforma política nesse contexto? Seria possível jogar na linha do projeto de reforma política proposto pelo deputado Ronaldo Caiado (DEM-GO) - que dispunha sobre voto de legenda por meio de listas, financiamento público de campanha, federações partidárias e redução da cláusula de barreira. Mas foi sintomático notar que, no momento em que a proposta estava sendo discutida, a imprensa só se ocupava do caso Renan Calheiros. E o projeto acabou não sendo aprovado. Isso é sintoma de quê? A imprensa não desviou o foco, mas ela segue o que é interesse do público em geral. A verdade é que o público não estava interessado em reforma política, e sim nas safadezas de um político. Mas decidir o que é de interesse maior não seria mais o papel dos políticos do que o dos eleitores? Você tem razão. A expectativa é que haja lideranças capazes de se alçarem acima da massa ignara. Acontece que não se pode esperar que a massa dos políticos seja diferente do próprio eleitorado. E é em função desse jogo que a mudança é gradual. O processo geral da democracia é bom, mas com ele vêm certas ruindades. Você tem que pagar o preço das ruindades para que a democracia se preserve. O encontro com os prefeitos se deu na data da festa de aniversário do PT. O senhor acredita em coincidência? Há a tematização pelo partido da caminhada eleitoral da candidatura Dilma, de como o PT vai conduzir isso. Essa coincidência permite supor que as coisas estejam ligadas. Não há implicação maior, vejo isso até com naturalidade. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso declarou que Lula e o PT estão antecipando a campanha presidencial. O senhor concorda? É difícil separar a atividade do governo de uma atividade orientada por preocupações eleitorais num país democrático, em que a cada quatro anos há disputa presidencial. A democracia envolve, por definição, conexão com o processo eleitoral. E é bom que seja assim. Isso garante que os administradores estejam preocupados com os interesses do eleitorado. O que um governo, a dois anos da eleição presidencial, pode fazer que venha a ser visto como não eleitoreiro? Não tem sentido fazer essa pergunta. Não há como traçar um limite entre o que é campanha e o que é gestão? Boa gestão municia a campanha. É natural que a oposição trate de antecipar sua campanha também. No limite, se começarmos a impor regras muito rígidas, o governo ficará impedido de governar em nome de não ser taxado de eleitoreiro. O governo está sempre, por definição, fazendo atividades eleitorais. Falando especificamente de ministros que são potenciais candidatos, como vamos dizer o que a ministra Dilma pode ou não fazer? Há um exagero na expectativa de que o Poder Judiciário, e a Justiça Eleitoral em particular, venha a regular essa situação. Tem havido uma distorção nesse sentido. Se vamos esperar que a Justiça Eleitoral diga o que se pode ou não fazer, de forma que isso impeça que um ministro que é candidato virtual de viajar ou ter contato com lideranças sindicais, vamos caminhar numa direção limitadora e fatal para a dinâmica de uma democracia eleitoral. FHC também convocou o PSDB a se organizar e entrar claramente na disputa presidencial. Há alternativa? Há uma fragilidade que se expressa justamente nessa contradição, em que o ex-presidente critica a antecipação do jogo eleitoral, mas tenta mobilizar o PSDB para entrar no jogo. Hoje a união do partido está ameaçada com essas candidaturas potenciais e um processo não estabelecido de decisão sobre elas. A forma tradicional, de três ou quatro líderes reunidos num restaurante fino de São Paulo, tomando bons vinhos, para definir o candidato à Presidência, não pode prevalecer. E as prévias podem dificultar ainda mais as coisas. O desafio está posto ao PSDB, mas ele é compensado pelo fato de ter alguns candidatos potenciais fortes e um eleitorado fiel, especialmente em São Paulo. Embora, com a penetração surpreendente do Lula, não se saiba até que ponto essa fidelidade se manterá. Hoje o presidente elegeria "o poste"? Essa é a maior indagação do momento. Não sabemos até que ponto sua popularidade vai se traduzir na transferência de votos. Algum ganho a candidata Dilma vai ter, ela terá um patamar inicial favorável. Isso não quer dizer que Lula elegerá qualquer um. Mesmo se tudo estiver bem do ponto de vista econômico e o presidente mantiver a popularidade, a ministra é uma candidata pesada para se carregar. Não tem apelo popular. Havia um estande no encontro em Brasília em que era possível tirar uma foto e uni-la digitalmente à imagem de Lula e Dilma. Com que impressão esses prefeitos voltaram para casa? Vai depender dos resultados desse encontro, se os recursos prometidos forem de fato disponibilizados. Certamente, os prefeitos avaliarão o que ganharam. Mas não vai bastar a foto com o Lula e a Dilma para mostrar ao eleitor. A disposição dos prefeitos só virá com resultados práticos dessas promessas.

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