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David Grossman mede o poder das escolhas em 'A Vida Brinca muito Comigo'

Romance parte de uma saga familiar em que uma neta busca entender suas raízes

Por Paulo Nogueira
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Responda rápido: de onde os escritores tiram os moldes de seus personagens? Não é de um pote de ouro no fim do arco-íris, guardado por um unicórnio. Mas de múltiplas fontes: gente que o autor conhece pessoalmente (parentes, amigos, colegas), gente que conhece indiretamente (personalidades públicas ou históricas, ou aquele povinho dos cinco minutos de fama) – e da sua própria autobiografia.

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Aos 68 anos, o israelense David Grossman é um craque nessa coquetelaria. Em 2011, ao lançar o romance Fora do Tempo, preferiu não dar entrevistas, pois era uma investigação íntima da experiência do luto. Uri, filho do ficcionista e sargento do exército de Israel, tinha sido morto no conflito no Líbano. Pouco antes, Grossman apelara a um cessar-fogo, ao lado de seus pares Amós Oz e A. B. Yehoshua. 

Natural de Jerusalém, Grossman cresceu rodeado de pessoas estoicas mas com psique traumatizada, e transportou essas figuras para a literatura, em livros como A Horse Walks Into a Bar (prêmio Man Booker, no Brasil traduzido como O Inferno dos Outros) e o pungente Ver: Amor, em que desponta o escritor Bruno Schulz (nascido no que é hoje a Ucrânia e lá assassinado em 1942 por um oficial nazista).

O escritor israelense David Grossman Foto: Gonzalo Fuentes/ Reuters

Em seu novo romance, A Vida Brinca Muito Comigo, o que Grossman verte do liquidificador é uma combinação de néctar com coquetel Molotov. Eva Panić-Nahir nasceu em 1918 na cidade croata de ČAkovec e morreu em 2015 num kibutz em Israel. Judia, casou com um oficial sérvio pouco antes da 2ª. Guerra Mundial, e depois o casal cooperou na criação da Iugoslávia do marechal Josep Broz Tito. Em 1951, durante o conflito entre Tito e Stalin, o marido de Eva sumiu do mapa. Ela foi informada pela polícia política de Tito que ele cometeu suicídio e que a viúva precisava assinar uma declaração de que o morto fora um inimigo do povo. Caso se recusasse, ela definharia na ilha de Goli Otok (o Gulag dos ioguslavos) e a filha de seis anos do casal seria abandonada na rua. Eva tinha três minutos para se decidir. 

A odisseia de Eva inspirou vários criadores (Danilo Kis rodou um documentário sobre ela). Grossman foi amigo dela durante vinte anos e, quando Eva morreu, decidiu contar a história do seu jeito: narrada por Gili, a neta ficcional de Eva (que no romance é Vera e acabou de fazer 90 anos). O primeiro marido de Vera, o sérvio Milósz, morreu há muito tempo, assim como o segundo marido, israelense, Tuvia. O filho de Tuvia, Rafi, namorou Nina, filha de Milóz e Vera, por sua vez pai e mãe da narradora Gili, agora com 39 anos. Juntos (em carne e osso ou na memória), partem numa peregrinação a Goli Otok (conhecida como “a Alcatraz do Adriático”). Aliás, a verdade sobre a ilha só aflorou publicamente em 1990, com o fim da Iugoslávia e do regime comunista. Erma e inóspita, hoje é uma curiosidade turística. 

A estrutura do romance é espiral, com constantes vaivéns cronológicos, e com duas poderosas premissas. A primeira é a opção de Vera (entre o cuidado da filha e a reputação do marido), que lembra A Escolha de Sofia (de William Styron) – talvez não tão trágica mas não menos excruciante. A segunda (uma pepita de ouro ficcional) é a tortura que Vera sofre na ilha: gerar uma sombra humana para a débil plantinha da comandante do campo de concentração. Lembra A Colônia Penal, de Kafka – não tão metafísica, mas não menos onírica. 

Grossman lembra as fontes históricas: o Israel da fundação em 1948 e o atual. A Iugoslávia de Tito e a Sérvia e a Croácia contemporâneas, lambendo as respectivas feridas. A infâmia mefistofélica do Holocausto (os pais da Vera morreram em Auschwitz). 

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A personagem Nina, filha de Vera e do pai sérvio, parece no início algo esquemática. Até compreendermos que é assim mesmo a efígie humana dela: danificada pela decisão salomônica da mãe. Durante meio século ela degenerou num fantasma e, por sua vez, também trai a própria filha. Tanto que Guli balbucia: “Quem sou eu senão o meu ódio por Nina?”

A atmosfera patibular do romance não descamba nunca no melodrama, graças ao humor agridoce do autor. Como na cena burlesca em que, em pleno aniversário dos 90 anos, a matriarca Vera evoca para os convidados boquiabertos as transas sísmicas dela e do marido israelense: “Na hora do, digamos, vamos ver, nós, Tuvia e eu, virávamos os retratos dos nossos dois falecidos para o parede”. Ela esperou com o rosto inexpressivo que “as novas gerações” parassem de engolir o riso, e num timing maravilhoso acrescentou: “Eles conheceram muito bem essa parede”.

Esgrimindo os paradoxos da natureza humana, o tema de A Vida Brinca Muito Comigo talvez corresponda à aspereza das escolhas antitéticas que vira e mexe a existência nos dita. Um dilema que já ressoa na literatura desde a Antígona, de Sófocles, em que a protagonista tenta enterrar o irmão Polinice com suas próprias mãos e contra a lei. Entre o coletivo e o individual, a justiça e a vingança, o social e o consanguíneo.

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