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De costas para a África, de frente para a peste

A volta da febre amarela ao cenário público resgata a origem escravocrata da doença no País

Por Monica Manir
Atualização:

Naquele verão de 1850, o povo do Rio de Janeiro fez procissão para São Sebastião, São Roque e outros mediadores celestiais. Rogava a interferência divina contra a epidemia que manchava a cidade, até então considerada imune às pestilências que assolavam a Ásia, a África e a América do Norte. Mas o vômito preto foi impiedoso. Matou oficialmente 4.160 pessoas, embora se falasse nos bastidores em até 15 mil pobres mortais. Neste verão de 2008, o povo do Brasil sai em desabalada romaria por postos de saúde atrás de proteção. Vacinal, bem dita. Temeroso com as vítimas já confirmadas da febre amarela - sete até o fechamento desta edição, maior número de casos desde 2003 -, paga penitência na fila atrás de um vírus atenuado. Os que tomaram a vacina há menos de dez anos estão dentro do prazo de validade e dispensados do martírio, mas ainda assim engrossam a procissão, o que levanta a hipótese de complicações posteriores com a superdosagem. Só que o povo não acredita no ministro Temporão, e pelo jeito nem no doutor Drauzio Varella, que descartam perigo de epidemia e propõem a vacinação apenas para aqueles que estão na mata endêmica ou a caminho dela. O povo acha que o governo quer descolorir a febre amarela, dizendo que onde não há verde está tudo azul. Para uma doença fora de moda, como a denomina o próprio Drauzio em O Médico Doente, no qual relata seu calvário ao pegar o vírus em 2004 quando voltava de uma viagem à floresta amazônica, a febre amarela ganhou revival no imaginário local. Seus personagens, porém, continuam os mesmos do século 19, quando ela aqui desembarcou em massa com o asqueroso rótulo de vômito preto, um de seus sintomas no estágio avançado. Vírus, mosquitos, macaco e homem sobrevivem como protagonistas dos ciclos da infecção, nascidos no bojo do comércio de escravos. "A febre amarela é uma instituição brasileira, faz parte da nossa história", define o virologista Paolo Zanotto, do Instituto de Ciências Biomédicas da USP. Ele completa: "É um legado de estupidez e imbecilidade, deixado pela política da escravidão". O invasor O flavivírus, agente da febre amarela, chegou no lombo dos navios negreiros em sucessivas viagens da África para as Américas, provavelmente de carona em carrapatos, roedores, pessoas e/ou mosquitos. Essa dedução não foi das mais tranqüilas para a época. Conta o historiador Sidney Chalhoub, autor de Cidade Febril, que havia resistência por parte dos escravagistas em estabelecer uma relação entre alhos e bugalhos, apesar de os médicos constatarem de imediato que a moléstia atacava de forma mais atenuada os africanos e a população negra da Corte. Os negros estariam mais aclimatados a ela. Já os brancos, especialmente os imigrantes, padeciam feio com a tragédia epidêmica. Chalhoub arrisca que a epidemia do verão de 1850 ajudou a convencer os parlamentares nacionais de que deviam finalmente ceder às pressões britânicas e liquidar com o tráfico negreiro. Os legisladores também eram pressionados por quem associava a doença a um anjo da morte enviado por Deus. Nada mais condenável aos olhos do Todo Poderoso, além de bailes e festanças despudorados, que os maus-tratos impostos aos escravos. O flavivírus da yellow fever (febre amarela), segundo o virologista Paolo Zanotto, tem taxa de evolução mais lenta que o flavivírus da dengue ou da encefalite japonesa. Significa que sofre menos mutações que seus parentes. Como é transmitido por artrópodes - mosquitos, por exemplo -, faz parte do grande grupo dos arbovírus. Mas os homens da ciência não sabiam, nos idos de 1850, que pernilongos desempenhavam papel fundamental nesse meio-de-campo. Alguns acreditavam no contágio direto, pele contra pele, e olhavam ainda mais torto para os africanos. Outros, para contestar essa via de transmissão, inoculavam em si mesmos suor, vômito e saliva de doentes. Houve quem apostasse em um veneno que brotava dos dejetos (de negros) entranhados nas madeiras podres dos cascos dos navios. Mal sabiam que o Aedes aegypti, no seu vôo silencioso, queria dizer: "Sou eu". O trnasmissor urbano Aedes aegypti é Aedes (Stegomya) aegypti. Foi confirmado como vetor no comecinho do século 20, quando o médico americano Walter Reed, sanitarista como o ministro Temporão, descobriu, por meio de soldados "voluntários", que a epidemia da febre amarela em Cuba era transmitida por um mosquito, o próprio. O inseto chegou à América como clandestino em condições muito melhores que os refugiados africanos que hoje viajam até o Brasil escondidos em cargueiros, sem direito ao sol. Nos navios negreiros, o Aedes encontrou sangue farto nos passageiros e água abundante em barris e poças, nos quais as fêmeas puderam espalhar sua prole em porções: 15 ovos aqui, 20 lá, num pinga-pinga difícil de combater. É um bicho crepuscular. Sua luz predileta é o lusco-fusco, embora ele também pique de dia. Chega ao homem se guiando pela visão parca, mas que percebe movimento, pelo CO2 emanado da respiração da caça e pelo suor dos pés. "O Aedes é doido pelo chulé", afirma o entomologista Ricardo Lourenço, do Instituto Oswaldo Cruz. O flavivírus também é fissurado no mosquito e o infecta integralmente, sem dó, embora sem óbito. Invade as células do estômago do inseto e se multiplica ali. Quando as células estouram, o vírus se replica pelo sistema respiratório, cérebro, ovário. Em cerca de dez dias, a saliva do Aedes está carregada de vírus, todos eles roxos para cair no vaso sangüíneo de um humano. O mergulho do flavivírus acontece na picada, enquanto o mosquito corre para não levar um tapão. Como o ovário da fêmea também está infectado, seus ovos certamente contêm vírus, que podem durar mais de meio ano. Dali nascem Aedes originalmente lotados de flavivírus, no que os especialistas chamam de "transmissão vertical". Recém-chegado ao Brasil, o Aedes encontrou uma população virgem de contato vivendo sob péssimas condições de higiene. Estabeleceu-se. O infectologista Stefan Cunha Ujvari, que escreveu a História e suas Epidemias, lembra que por muitos verões o Aedes transmitiu sem pudor a febre amarela, provocando o êxodo dos moradores mais abastados serra acima, em direção a Petrópolis. Foi erradicado apenas na década de 50, numa operação de guerra engendrada por Oswaldo Cruz, no Rio, e por Emílio Ribas, em São Paulo. Voltou à terra brasilis no final da década de 60, por causa do nosso cochilo na fronteira com a Venezuela por exemplo, um dos focos da nova infecção. O filho pródigo voltou. Hoje é o vetor da dengue. Mas, nesta temporada de febre amarela, que se saiba ainda não trabalhou. O vírus foi transmitido apenas pelo vetor abaixo. O transmissor silvestre Uma vez no Brasil, o flavivírus percebeu que o Aedes não dava conta de sua ânsia de conquista. Apoderou-se então de outros mosquitos, mais afeitos à floresta - o Haemagogus e o Sabethes. O Haemagogus é do tipo agressivo; o Sabethes, tímido. Preferem picar macacos, mas na falta desses se arrumam com marsupiais e humanos. E são totalmente diurnos. Não gostam de baladas. Interessados como são nos macacos, os vetores da febre amarela silvestre botam seus ovos no alto. Acham um oco de pau propenso a virar caixa d?água e ali depositam sua herança genética. Ambos têm coloração metálica, brilham quando bate o sol. Podem ser azuis, verdes, às vezes violáceos, um contraste com o Aedes, alvinegro e opaco. Nos três, a infecção do vírus é semelhante, assim como a inoculação. O receptor silvestre Nas Américas, predominam os primatas do novo mundo, de menor porte e narinas afastadas, como os bugios, sagüis, micos, macacos-prego, macacos-barrigudos, macacos-aranha. São eles - e não os orangotangos e os gorilas - os mais afetados pela forma de transmissão silvestre da febre amarela no Brasil, explica a veterinária Cléa Lúcia Magalhães, do Jardim Zoológico de Brasília. A infecção nos macacos tem evolução e desfecho semelhantes aos dos humanos. Sua morte seria sinal de vírus ao redor, desde que comprovada a presença do microorganismo no corpo do animal. "Há várias outras possíveis razões para os macacos encontrados mortos até então", afirma Paolo Zanotto. Bactérias, outros vírus, algum veneno despejado consciente ou inconscientemente no hábitat. A vacina usada em adultos poderia ser usada para controlar a versão silvestre da doença, como fazem os franceses vacinando as raposas para evitar a raiva. Mas Zanotto se exaspera com o caos ecológico vindo de uma iniciativa do gênero: "Não sabemos as conseqüências de eliminar o vetor na floresta, nem como proceder à captura dos primatas". Está com o ministro: o importante é vacinar os humanos que visitam a floresta. O receptor urbano - Você não tomou a vacina contra a febre amarela? - Deve estar vencida há vinte anos - respondi. É o trecho do livro de Drauzio Varella em que o médico confessa seu deslize com a proteção, mais tarde descrita como procedimento inadmissível para qualquer pessoa esclarecida, mesmo com a justificativa de mais de 50 viagens feitas ao Rio Negro sem ter ouvido falar de um só caso da doença por lá. Diante do diagnóstico, Drauzio resgata lembranças de epidemias do passado, do surto letal na Hospedaria dos Imigrantes, das campanhas de Oswaldo Cruz para matar mosquitos, da Louisiana que os franceses venderam para os americanos a preço de banana por causa da febre amarela. Mesmo prostrado, preocupou-se. Sabia que, uma vez no corpo, o flavivírus causa uma infecção aguda, cujos primeiros sintomas são febre alta, calafrios, prostração, cefaléia, dores musculares (Drauzio se contorcia com um "alicate" que lhe apertava as costas), náuseas e vômitos. Dois ou três dias depois aumentam as transaminases no corpo, um indício de lesão no fígado. Passada essa fase, vem a remissão, respiro de 24 a 48 horas, com o doente em relativa tranqüilidade, talvez sem febre. Eis o divisor de águas: a partir daí a infecção pode regredir gradativamente ou avançar para a intoxicação com recrudescimento da febre, desconforto abdominal, icterícia progressiva (eis o porquê de febre amarela), hemorragias, insuficiência renal, delírio, coma, alterações metabólicas irreversíveis. A morte vem entre sete e dez dias depois do primeiro episódio de febre. O tratamento não existe, a não ser repouso absoluto e hidratação com soro glicosado. Nos tempos de 1850, porém, transbordaram discussões terapêuticas à beira do leito. Purgativos, vomitórios e sangrias eram os preferidos dos alopatas. "Glóbulos de vento", dos homeopatas. E muita água fria para os hidropatas, como o dr. Antonio Ildenfonso Gomes, que recomendava um copo d?água a cada dez minutos, um cristel (injeção por via retal) do líquido de duas em duas horas, mais fricções de água no ventre, nos quadris e nas coxas, além da cabeça embrulhada em panos devidamente intumescidos. Justificava assim sua profilaxia aqüífera: "Deus não criou tanta água no mundo debalde. Água fria e mais água fria é a grande panacéia universal. Água para tudo, em tudo, com tudo e por tudo - água por todas as partes... E salve-se a humanidade!" Governo nega culpa QUINTA, 17 DE JANEIRO O aumento dos casos de febre amarela não é culpa do governo, mas das pessoas que não se vacinaram e foram para áreas de risco, disse o ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Até a noite de sexta-feira havia 11 casos confirmados da doença, com 7 mortes.

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