De guardião a delinqüente: Estado torturador

Caso da adolescente estuprada na cela mostra a falta de proteção ao preso no Brasil. Parâmetros mínimos são violados

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Por Flávia Piovesan
Atualização:

Após a recente visita do relator especial da ONU para o tema das execuções sumárias, extrajudiciais e arbitrárias, uma vez mais o Brasil é denunciado na arena internacional por violação de direitos humanos, com a divulgação de relatório elaborado pelo Comitê da ONU contra a Tortura. Para o comitê, a prática da tortura é generalizada e sistemática e seus perpetradores têm impunidade assegurada. Em 2001, na visita ao Brasil do então relator da ONU para o tema da tortura, o mesmo diagnóstico fora apresentado. Novamente, perante a comunidade internacional se afirmou que a tortura no Brasil era widespread and systematic. Como caso emblemático de maus-tratos, tratamento cruel, desumano e degradante foi noticiado essa semana o dramático caso de uma jovem, acusada de furto, que passou 15 dias presa em uma cela com 20 homens no Pará e foi vítima de estupro e outros abusos sexuais. A jurisprudência internacional tem equiparado a violência do estupro à tortura. Ao negar o direito à integridade física e mental, especialmente daqueles (as) que estão sob a sua custódia, o Estado viola parâmetros protetivos mínimos consagrados na ordem internacional e interna. Como compreender a persistência da tortura e maus-tratos na experiência brasileira? Quais os mecanismos e instrumentos para combate da tortura? Qual tem sido a eficácia e impacto na realidade brasileira? No plano internacional, a tortura foi um dos primeiros atos a ser considerado, por sua gravidade, crime contra a ordem internacional. Daí a adoção da Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, pelas Nações Unidas, em 28 de setembro de 1984, ratificada hoje por 141 Estados-partes. Em 2002, foi aprovado um Protocolo Facultativo à Convenção, que estabeleceu um sistema preventivo de visitas regulares a locais de detenção. Não há nenhuma possibilidade de derrogar a proibição da tortura. A convenção é enfática ao determinar que nenhuma circunstância excepcional, seja qual for (ameaça, estado de guerra, instabilidade política interna ou qualquer outra emergência pública), possa ser invocada como justificativa para a tortura. O Brasil ratificou a Convenção contra a Tortura em 1989 e seu Protocolo Facultativo em janeiro deste ano, assumindo, no livre exercício de sua soberania, obrigações jurídicas para o combate à tortura e autorizando o monitoramento internacional do modo pelo qual implementa a convenção. O sistema internacional de proteção de direitos humanos tem por objetivo demandar avanços internos no regime doméstico, em respeito aos deveres estatais internacionalmente contraídos. No âmbito interno, a Constituição de 1988 foi a primeira a consagrar que a tortura deve ser considerada crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia, por ele respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-lo, se omitirem. Contudo, somente em 1997 foi aprovada Lei 9.455, que define e pune o crime de tortura como um tipo penal autônomo e específico. Até então a tortura era punida apenas sob a forma de lesão corporal ou constrangimento ilegal, em flagrante afronta aos comandos constitucionais e internacionais. Levantamento feito em 2005 aponta que o número de agentes condenados pela prática da tortura, no país inteiro, não chegava sequer a 20. Na maioria dos casos ainda se recorre aos tipos penais de lesão corporal ou constrangimento ilegal para punir a tortura (como no passado, quando não existia a lei), em detrimento da efetiva aplicação da Lei 9.455/97. Pesquisa realizada pelo Conselho Nacional dos Procuradores-Gerais de Justiça registra que, nos primeiros cinco anos de vigência da lei, foram apresentadas 524 denúncias de tortura, mas somente 15 (4,3% do total) foram a julgamento e apenas 9 casos (1,7%) resultaram em condenação de torturadores. Esses dados revelam que, na prática, não foram incorporados os avanços introduzidos pela Lei 9.455 de 1997. Em geral, a tortura ocorre quando o indivíduo está sob custódia do Estado, em delegacias, cadeias e presídios, remanescendo como usual método de investigação policial para obter informações e confissões sobre crimes. Diversamente da prática da tortura perpetrada durante o regime militar, orientada por critério político-ideológico, que tinha por vítima sobretudo a classe média ou a elite, a prática da tortura, na era da democratização, orienta-se por critério econômico-social, com forte componente étnico-racial, tendo como vítima preferencial, conforme relatórios das ouvidoriais de polícia, jovens, negros e pobres. A prática da tortura se manterá na medida em que seus agentes tiverem impunidade assegurada. Como já disse um então relator especial da ONU, Nigel Rodley, a tortura é um "crime de oportunidade" que pressupõe a certeza da impunidade. O combate ao crime de tortura exige a adoção pelo Estado de medidas preventivas e repressivas, sob o atento monitoramento da sociedade. De um lado, é necessária a criação e manutenção de mecanismos que eliminem a "oportunidade" de torturar, garantindo transparência ao sistema prisional-penitenciário. De outro, a luta contra a tortura impõe o fim da cultura de impunidade, demandando do Estado rigor no dever de investigar, processar e punir seus perpetradores, bem como de reparar a violação. Essa também foi a conclusão do relator da ONU para o tema das execuções extrajudiciais, Philip Alston, ao investigar mortes cometidas por agentes estatais à margem da lei. Ressaltou o relator que a maioria dos inquéritos que investigam extermínios feitos pela polícia não resulta em punições. Uma vez mais, a impunidade dos agentes estatais é fator a alimentar o ciclo de execuções arbitrárias, que faz do homicídio a principal causa de morte entre pessoas de 15 a 44 anos no Brasil, com um impacto desproporcional nos jovens, negros e pobres. Os parâmetros civilizatórios continuarão fortemente comprometidos enquanto persistir a tortura em dependência policial ou prisional e enquanto se tolerar que os condenados à pena privativa de liberdade tenham uma pena adicional por meio de tortura, maus-tratos e condições degradantes. Não há verdadeiro Estado de Direito e democracia sem que os direitos humanos sejam respeitados. Não há segurança sem direitos humanos, nem tampouco direitos humanos sem segurança. Esses termos são interdependentes e inter-relacionados, mantendo uma relação de condicionalidade e de complementariedade. Foram necessários 497 anos de história para que, finalmente, o Brasil adotasse a lei de combate à tortura. A atuação repressiva do Estado deve ser pautada pela legalidade, eficiência e inteligência. A perversa prática da tortura lança o Estado à deliquência, convertendo-o de guardião de direitos em atroz violador da legalidade. *Flávia Piovesan é professora doutora em Direito Constitucional e Direitos Humanos na PUC de São Paulo, na PUC do Paraná e na Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha)

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