Democracia da tortura sancionada

Má notícia: nenhum dos dois candidatos presidenciais americanos teve a coragem de tocar efetivamente nessa ferida

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Por Lúcia Guimarães
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Eu confesso. Qualquer coisa. Se um gorila em uniforme de camuflagem me encapuzar e me pendurar de cabeça para baixo, muito antes de seu assistente entornar o balde d?água dentro do capuz, eu digo que organizei uma milícia para canibalizar bebês e ainda dou detalhes dos rituais. Se uma criatura sancionada pelo Estado, qualquer Estado, me amarrar nua a uma coleira e me jogar contra a parede de concreto da minha cela imunda eu sou capaz de tecer uma trama confessional que daria inveja a John Le Carré. Tudo para interromper a sessão de tortura. E depois de dias, meses de escuridão e isolamento, estarei emocionalmente ligada ao meu captor e ficarei grata a ele pelo menor sinal de alívio ao meu tormento. Há décadas, sabe-se que a tortura obtém principalmente confissões falsas. Felizmente não fui presa nem torturada. Mas a tortura descrita acima é sancionada pela democracia que mais inspirou as democracias dos últimos 200 anos, sob as regras do Programa, como ele é chamado pelo próprio George Bush A boa notícia é que a grande repórter investigativa Jane Mayer, uma das mais importantes da revista The New Yorker, não vai ser perseguida pelo seu relato extraordinário, publicado no livro The Dark Side - A História de como a Guerra contra o Terror se Tornou uma Guerra pelos Ideais Americanos. A má notícia é que nenhum dos dois candidatos presidenciais americanos teve a coragem de tocar efetivamente nessa ferida cheia de pus. Os jornais americanos na sexta-feira estamparam manchetes sarcásticas sobre o tour europeu de Barack Obama, criticaram a falta de substância de seu discurso para 200 mil na Alemanha e instigaram o isolacionismo do público conservador. Poderiam também ter destacado que Obama, mesmo quando não diz muito com sua eloqüência natural, está preenchendo o rombo simbólico aberto pelo governo que montou uma operação para ignorar a Convenção de Genebra e patrocinou uma orgia de barbárie clandestina em nome do combate ao terrorismo. Que tarefa deprimente, disseram alguns a Jane Mayer, enquanto ela se debruçava sobre fotos de prisioneiros torturados e escrevia The Dark Side. Não, ela respondia, e explicava sua reserva de otimismo. Entre os maiores opositores da vice-presidência imperial de Dick Cheney havia militares de alta patente, republicanos conservadores, funcionários de carreira do FBI, todos membros do establishment que reverenciam a Constituição americana. O título do livro é cortesia de Dick Cheney, que no primeiro domingo depois do 11 de Setembro, previu: "Temos que trabalhar com o lado negro". Mayer relata a visita que um analista da CIA fez à prisão de Guantánamo em 2002. O analista tinha décadas de experiência com terrorismo e falava árabe. Depois de entrevistar dezenas de prisioneiros, ele concluiu que pelo menos um terço deles estava ali por engano, não tinha o menor valor para o governo. Seu relatório criou alarme no governo Bush, que resolveu ignorá-lo e manteve a cegueira ideológica sobre as táticas de exceção. Mesmo depois que o então comandante da base, major Michael Dunlavey, aumentou a estimativa para 55% de detenções desnecessárias. O país reinventado por Dick Cheney depois do 11 de Setembro está sob constante ameaça de um ataque terrorista que pode incluir uma bomba nuclear. Sete anos depois da destruição das torres gêmeas, não houve nenhum atentado em solo americano. Os documentos sobre confissões que o governo obteve dos prisioneiros na base de Guantánamo ou nas prisões secretas mantidas pela CIA no exterior (e, como articularam os advogados do governo, fora da jurisdição constitucional do país) continuam secretos, mas entre os raros observadores que tiveram acesso eles está o senador Jay Rockefeller. Ele é presidente da Comissão de Inteligência do Senado, e, como lembra Jane Mayer, não foi uma voz de protesto ao longo dos dois mandatos em que Cheney e sua claque construíram a arquitetura jurídica para desprezar a Convenção de Genebra e um punhado de idéias básicas sobre as quais o país foi fundado. O senador Rockefeller declarou num comunicado recente: "Não ouvi nenhuma evidência de que o uso das novas técnicas de interrogatório tenham ajudado a prevenir um ataque terrorista. E não ouvi nada que me convencesse que as técnicas de interrogatório convencional não teriam chegado aos mesmos resultados". O personagem central do livro de Jane Mayer é Dick Cheney, seguido de perto por seu assessor David Addington ("ninguém à sua direita"). Addington, além de passar como um trator sobre qualquer resistência oferecida por funcionários do governo com base, digamos, na lei, era o filtro das informações sobre o combate ao terrorismo colocadas na frente de George Bush. I am the decider ("Eu sou o decididor"), disse o presidente, cunhando mais um neobushismo para delícia dos comediantes de fim de noite. O Decididor, notoriamente avesso a leitura e informação, estaria sendo blindado das conseqüências legais de seus atos ou seria um entusiasta bem informado? A resposta pode ter conseqüências significativas nos próximos anos. A Cruz Vermelha entregou um relatório ao governo Bush com o resultado de entrevistas com os chamados "combatentes inimigos" de Guantánamo. O relatório, que continua classificado, é, segundo, Jane Mayer, inequívoco quanto à ocorrência de tortura. Vejamos, quando você perdeu uma perna e o seu captor toma a sua prótese e o obriga a ficar de pé durante horas isso será? fisioterapia? Independentemente do contorcionismo semântico em Washington, o relatório da Cruz Vermelha mexe no vespeiro teórico da acusação criminal. Na semana passada, quando Radovan Karadzic foi preso num ônibus em Belgrado, lembrei de um dia em que cheguei do trabalho e lavei as mãos várias vezes, um gesto fútil. Tinha acabado de apertar a mão de Karadzic num quarto de hotel em Manhattan, porque ele me estendera a mão e eu estava lá como repórter freelancer da Agência Reuters, cobrindo as idas e vindas da guerra dos Bálcãs na ONU. Não havia planejado ficar cara a cara com um genocida. Podia ter recolhido a mão, mas o impulso profissional de apertar a mão gorda do homem que sancionou a morte de 8 mil pessoas e se apresentava como um santarrão me tirou o sono. É possível que esforços notáveis como o livro de Jane Mayer comecem a provocar insônia na capital americana. lgsamambaias@gmail.com

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