Democracia, só, já não basta

É hora de a América Latina buscar qualidade nos regimes

PUBLICIDADE

Por Manuel Antonio Garretón
Atualização:

Depois de superar o passado autoritário, os países da América Latina têm uma nova agenda institucional e social. Concluídas as transições e consolidados os regimes pós-ditatoriais, não obstante as desestabilizações e quedas de presidentes sob pressão popular - problemática dominante nos anos 80, 90 e ainda no início desta década -, uma nova questão passou a predominar: a qualidade da democracia conquistada e consolidada. Embora seja verdade que, desde a instalação dos novos regimes, existiu em vários setores a preocupação com o tipo de democracia que estava sendo criada, a preocupação maior era com a mera existência do regime democrático e os riscos iniciais de um retorno das ditaduras. Além disso, essa preocupação se direcionava mais para a herança ou os enclaves legados pelas ditaduras do que para os novos aspectos da vida política. Agora que esse risco parece distante, a qualidade das democracias latino-americanas tornou-se o tema principal de análise e do debate político. É isso o que nos mostram os rankings e indicadores oferecidos a partir de pesquisas que medem dados subjetivos como as impressões causadas pela realidade institucional ou pelo próprio funcionamento das democracias. Eles são refletidos nos resultados socioeconômicos, na qualidade das instituições, nos níveis de satisfação ou em alguma combinação de um ou de outro fator. Há três aspectos que esses rankings e indicadores apresentam. O primeiro é a observação de que a mera existência de determinadas instituições próprias da democracia não garante uma democracia de fato. É o que acontece quando há elementos antidemocráticos na constituição ou quando a própria Carta foi herdada da ditadura sem que uma nova, e democrática, tenha sido redigida. Elementos que em uma determinada sociedade podem satisfazer os padrões de uma democracia plena, em outras pode miná-la. É o que ocorre com os sistemas eleitorais. É um lugar comum dizer que tais sistemas são neutros e que um não é mais democrático que o outro. Quem observa na prática seus efeitos na sociedade logo percebe que um sistema pode, sim, ser mais democrático do que outro. Seus objetivos, os de garantir proporcionalidade, pluralismo, participação popular, não são igualmente garantidos por todos os sistemas eleitorais em todas as sociedades. É possível realizar eleições livres, competitivas e transparentes sem que o resultado final seja a expansão e aprofundamento da democracia e sim a formação de uma elite fechada e excludente. O mesmo ocorre na formação do Poder Judiciário ou nas relações entre Executivo e Legislativo. Mas essa não é uma questão que pode ser mensurada com critérios quantitativos, então precisamos de uma análise comparativa. Quando a análise da qualidade democrática por um sistema de rankings e indicadores é a única forma de análise utilizada, criamos uma situação em que critérios tecnocráticos e midiáticos se sobrepõem aos argumentos. Mas são argumentos, não tecnocracia, que sustentam uma análise democrática. Um exemplo claro e direto: rankings põem o Chile nas primeiras colocações de qualidade democrática da região. O mesmo Chile herdou sua constituição da ditadura, tem um sistema eleitoral excludente e um Judiciário que defende a impunidade para violações dos direitos humanos. O segundo aspecto leva em conta que, sem menosprezar a importância da autonomia na democracia política, sua qualidade é afetada por elementos socioeconômicos e culturais. A igualdade de direitos, um dos princípios éticos fundamentais da democracia, exige a distribuição eqüitativa do poder, da riqueza e a existência de uma verdadeira comunidade socioeconômica. Já a diversidade cultural, ao invés de enfraquecer, fortalece a coesão social. Estes são elementos que, embora não possam ser considerados condições essenciais para a existência de uma democracia, são indispensáveis na hora de avaliar sua qualidade. Como os rankings de democracia não levam tais elementos em conta, eles desfiguram completamente qualquer análise comparativa e se prestam mais a um instrumento ideológico do que científico. Fernando Vallespín apresentou o terceiro aspecto na reunião da Associação Latino-Americana de Ciência Política, na Costa Rica, há algumas semanas. Nem sempre, quando avaliamos a qualidade das democracias, levamos em consideração a transformação das democracias representativas sustentadas por partidos políticos em democracias orientadas pela lógica midiática. Nestas, tanto candidatos quanto aqueles que ocupam os cargos representativos mais altos deixam de representar seus ideais partidários e terminam dominados pela lógica dos meios de comunicação que podem ser tudo, mas não são o reino da democracia deliberativa ou argumentativa. Em determinados contextos, os meios podem exercer um papel fundamental para a importância democrática, mas não devem ser a única fonte de informação e análise, tampouco devem encampar a idéia de que, se não está nos veículos de comunicação, é porque não existe. A transformação dos meios em poderes de fato limita o caráter democrático dos processos políticos, o que se agrava nas situações em que não existe pluralismo na mídia. A Itália de Berlusconi é, por exemplo, menos democrática do que muitas democracias que aparecem mais abaixo nos rankings. Não se trata, aqui, de negar o valor que índices e rankings de qualidade democrática podem ter, apenas de assinalar seus limites e aprofundar a análise com argumentos que levem em conta o contexto histórico e o impacto que estes marcos impõem aos índices. *Professor das Universidades do Chile e de Buenos Aires, o cientista político e sociólogo chileno Manuel Antonio Garretón é autor de O Processo Político Chileno e Ditaduras e Democratização, entre outros

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.