Denis Johnson e sua visão poética de um mundo prostrado

Prosa do escritor une o aço e o lirismo da poesia e captura o mundo surreal da Johnsonlândia

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Por Michiko Kakutani
Atualização:
Denis Johnson, o poeta e romancista cujo trabalho emprestou aos seus desesperados e por vezes loucos personagens uma dimensão quase mítica Foto: Marion Ettlinger/Corbis

Numa de suas raras entrevistas, o ficcionista e poeta Denis Johnson – morto no dia 24 de maio aos 67 anos – falou de sua arte e citou estas linhas de Joseph Conrad: “Meu trabalho é, pelo poder da palavra escrita, fazer vocês ouvirem, sentirem e, acima de tudo, enxergarem. É só isso – e tudo isso”. 

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Em seus romances e poemas, Johnson cumpriu essa meta com selvageria e precisão extraordinárias. Usou seu surpreendente dom da linguagem para criar telas escritas tão detalhadas, visionárias e variadas como as de Edward Hopper e Hieronymous Bosch. Retratou a vida dos excluídos – derrotados, despossuídos, amaldiçoados – com empatia e uma franqueza assustadora. Suas histórias, fossem elas ambientadas em bares e motéis de cidadezinhas americanas ou nas ruas da Saigon em guerra, falavam de pessoas vivendo no limite – viciadas em drogas, adrenalina ou fantasia, enredadas na estupidez e exigências da vida moderna, ansiosas por salvação. 

Existe nos trabalhos mais fortes de Johnson um toque feroz e estático que dá a seus personagens e histórias uma dimensão épica, quase mítica, na melhor tradição americana de Melville e Whitman. Nos contos interligados de Jesus’ Son (1992), o narrador atravessa cruas paisagens de néon de bares caídos e motéis baratos dos EUA, esbarrando numa sucessão de desajustados tão alienados e desesperados quanto ele – gente endoidecida como as almas perdidas de Winesburg, Ohio, de Sherwood Anderson, ou como drogados saídos de um álbum de Lou Reed. 

Em Fiskadoro (1985), ambientado num futuro pós-3ª Guerra Mundial, um punhado de sonhadores, vigaristas e piratas vive no lugar apocalíptico que havia sido Florida Keys, agarrando-se a farrapos de memórias. E em Tree of Smoke (2007), contemplado com o National Book Award, um jovem agente de inteligência se encontra preso na selva de espelhos que foi a Guerra do Vietnã – uma guerra, na narrativa de Johnson, não tão diferente de nosso recente e desastroso envolvimento no Iraque – na qual era cada vez mais difícil distinguir entre bem intencionados e mercenários, entre traidores e gente confiável. 

Os Estados Unidos de Johnson, do passado ou de hoje, continuam reverberando fantasmagoricamente. São uma terra perturbada, de excessos avassaladores e perdas dolorosas, um país em que os sonhos frequentemente terminam em completa desilusão e as pessoas têm fome de salvação – mesmo que a salvação venha de um messias meia-boca. A razão está em falta, mas abundam vigaristas e picaretas vendendo notícias falsas e teorias da conspiração. Famílias se desmembram, ou nem existem mais. Instintos primais darwinianos substituem leis. E, no entanto, entre o pasmo e o desespero há lampejos de reflexão e esperança sinalizando com a possibilidade de redenção. Em Tree of Smoke, The Stars at Noon (1986) e The Laughing Monsters (2014), os EUA parecem ter exportado algumas de suas loucuras nativas – dentro do que Johnson descrevia como colonização militar e cultural de largas faixas do globo. Pobreza e caos se multiplicam no exterior, onde o sol e o calor alimentam a sensação de que as coisas estão se desconjuntando. 

Johnson escreve sobre ônibus da América Central que “parecem ter saído de Buchenwald para, no Terceiro Mundo, levar gente pobre para casa”. E sobre o “coração” da África, onde o tráfego anda “no estilo africano, com muita buzina e pouco freio”.  Os enredos dos livros de Johnson tendem a ser entrelaçados, melodramáticos – com frequência, fortemente inspirados em obras famosas de Conrad, Graham Greene e Robert Stone. Em livros menores, como Already Dead: A California Gothic (1997), sua escrita pode se transformar numa especulação palavrosa, engordada com entonações New Age e nietzschianas. 

Mas em suas obras-primas – Fiskadoro, Jesus’ Son, Tree of Smoke e o perturbador romance de estreia, Angels (1983) – uma linguagem incandescente canaliza o desespero dos personagens. Nessas obras, a prosa une o aço e o lirismo da poesia e captura o mundo surreal da Johnsonlândia, em que a vida diária sangra em imagens alucinadas e a própria realidade se assemelha a um pesadelo febril. 

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“Escrevo”, disse uma vez Johnson, “sobre viver num mundo decadente e ter de se perguntar por que as coisas são assim, se supostamente existe um Deus”. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ 

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