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Dentes cerrados

Jornalista uruguaio conta como punição excessiva a Suárez pela mordida causou fúria em seu país

Por Christian Müller
Atualização:
A Uruguay fan bares his teeth, representing Luis Suarez, before the 2014 World Cup round of 16 game between Colombia and Uruguay at the Maracana stadium in Rio de Janeiro June 28, 2014. REUTERS/Sergio Moraes (BRAZIL - Tags: SOCCER SPORT WORLD CUP) Foto: SERGIO MORAES/REUTERS

Um carro branco sai da base aérea ao lado do Aeroporto de Carrasco e acelera no nevoeiro das 5h30 da manhã do dia 27. Na rodovia, dezenas de pessoas acenam. No carro segue, com a mulher e os dois filhos, o craque da seleção uruguaia Luis Suárez, que não imaginava esse regresso quando, 17 dias antes partiu daqui rumo ao Brasil para a Copa do Mundo.

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Centenas de pessoas esperam há horas o jogador de 27 anos, suspenso por nove partidas internacionais e quatro meses e expulso do torneio por morder um zagueiro italiano. O presidente uruguaio, José Mujica, falou por telefone com Diego Maradona para o programa De Zurda, enquanto esperava o avião. “Há uma multidão revoltada passando frio”, contou. De madrugada, Mujica recebe finalmente Suárez. Segundo contará mais tarde, abraça-o “em nome do povo uruguaio” e o convida a “continuar vivendo, aprendendo e lutando”.

A rádio colombiana La FM chama por telefone Rodolfo Suárez, pai de Luis, que acaba de voltar do aeroporto. “Não dormimos a noite toda. Desculpe, estamos muito angustiados com toda essa história e não queremos falar com a imprensa, certo? Pergunte à Fifa como estamos. Ponha-se no nosso lugar, estamos bem mal.”

Nos dias seguintes, Mujica e outros políticos continuam protestando: “Uma agressão monstruosa”, diz o presidente. “O pessoal da Fifa é um bando de velhos filhos da puta”, deixa escapar. O vice Danilo Astori, conhecido por sua moderação, concorda. “A decisão da Fifa é uma vergonha. Por causa da desigualdade de comportamento diante de situações semelhantes.”

O assunto monopoliza as conversas dos uruguaios como poucas vezes aconteceu. Predomina a ideia de que o jogador errou, mas a punição imposta foi excessiva. “O que mais dói a nós, uruguaios, é o fato de ter sido tratado como um criminoso”, disse a ministra do Esporte, Liliam Kachichian. “Não sei por que ele tem desses repentes, quando tem tudo para ser feliz”, diz a avó Lila Píriz à AFP. “Transformaram a figura de Suárez num herói moderno para nossa identidade”, afirmam dois psicólogos uruguaios num ensaio. “Mais que uma sanção, foi uma execução e uma humilhação”, opina um ex-chanceler.

Nascido na cidade de Salto, no norte do Uruguai, aos 7 anos Suárez mudou-se para Montevidéu, onde seus pais se separaram. Adolescente de vida dissipada, conheceu a mulher, Sofía, que o ajudou a entrar nos trilhos e se dedicar ao futebol profissional. Chegou à seleção uruguaia e depois foi jogar na Holanda, onde despontou como goleador de nível mundial.

Um mês antes de participar do Mundial no Brasil, Suárez sofreu uma lesão nos meniscos. Foi operado e em três semanas deixou a cadeira de rodas e jogou contra a Inglaterra em São Paulo, onde fez os dois gols da vitória. Na partida seguinte, cravou os dentes no ombro de Giorgio Chiellini e foi atirado ao fosso dos leões.

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Um ano atrás, no programa Hablemos, questionaram Suárez sobre seus insultos e as mordidas anteriores no campo. “Nem eu consigo entender isso. São momentos de impotência, quando as coisas estão indo mal”, respondeu. “São tantas coisas que se passam e depois tudo acontece num milésimo de segundo. Acho que é porque vivo o futebol de maneira intensa. Vivo muito o futebol porque sofri muito para chegar aonde estou. Às vezes, o futebol leva a gente a fazer coisas de que se arrepende mais tarde.”

No dia 28 o Uruguai jogou contra a Colômbia. Vários torcedores visitaram Suárez em Solymar, um balneário a 23 km de Montevidéu. É uma casa de tijolos aparentes de dois andares com janelas protegidas por grades. As pessoas cantam, agitam bandeiras e cartazes. Alguém sobrevoa o lugar com um ultraleve com seu nome, “Luis”. Uma empresa monta um telão para transmitir a partida. Reúnem-se centenas de pessoas, vendedores de comida e furgões de canais de TV. Suárez aparece à janela e acena com os filhos nos braços.

No Rio, James Rodríguez marca de esquerda e põe a Colômbia em vantagem. Os poucos uruguaios nas tribunas do Maracanã usam máscaras de Suárez e erguem cartazes contra a Fifa que, segundo denunciaram, foram confiscados por funcionários da organização.

Às 19 horas, o Uruguai está fora do Mundial. Alguns torcedores continuam esperando outra aparição do ídolo. Luis abre pela última vez a janela, pela qual se veem luzes, e acena. Não voltará a ser visto em público.

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Enquanto ele se fecha em casa e os uruguaios lamentam a eliminação, prepara-se o futuro do atacante. Apesar da sanção, o Barcelona intensifica as gestões para contar com ele. Alguns meios de comunicação informam que, para que sua transferência se concretize, ele precisa pedir desculpas.

“Depois de alguns dias em casa com minha família, tive a oportunidade de recuperar a calma e refletir sobre a realidade do que aconteceu”, escreve Suárez no Twitter, em sua única declaração pública. “Estou profundamente arrependido. Peço desculpas a Chiellini e a toda a família do futebol. Me comprometo publicamente a não deixar que volte a acontecer um incidente como esse com minha intervenção.”

Dias depois, diretores do Liverpool e do Barcelona se reúnem para negociar a transferência. O presidente da Fifa, Joseph Blatter, diz: “Esperamos vê-lo em breve no campo”. Na quinta, advogados do atacante recorrem sobre a punição. Surge o rumor de que Suárez estaria autorizado a treinar, mas na sexta a Fifa nega. No mesmo dia, a rádio catalã Cadena Ser anuncia que os clubes chegaram a um acordo de € 90 milhões e que o craque uruguaio é o novo reforço do Barça. Será? / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA

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Christian Müller é jornalista e editor da revista semanal Búsqueda, de Montevidéu

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