Denúncias de assédio reacendem debate sobre separação de vida e obra

Deve a arte pagar pelos crimes do artista?

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

A certa altura do filme O Terceiro Homem (1949), do inglês Carol Reed, Harry Lime, o personagem interpretado por Orson Welles, formula a mais brilhante e cínica defesa do primado da arte que eu conheço: “Na Itália dovs Bórgias, 30 anos de guerras, terror, assassinatos e banhos de sangue produziram Michelangelo, Leonardo da Vinci e a Renascença. Na Suíça, o que 500 anos de harmonia fraternal, democracia e paz produziram? O relógio cuco.” 

Anna Karina empunha tesoura em cena de 'O Demônio das Onze Horas', de Jean-Luc Godard 

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Graham Greene escreveu o roteiro do filme, mas a frase foi um caco, um improviso de Welles, que a extraiu de uma obscura peça de teatro húngara, embora pudesse ter-se inspirado em Nietzsche ou mesmo Walter Benjamin. Poderosos maus espíritos muito contribuíram para a evolução da humanidade, ponderou Nietzsche. Todo monumento da cultura é também um monumento da barbárie, argumentou Benjamin. 

Alguém se lembrou da debochada síntese de Harry Lime em meio ao vendaval de denúncias de assédio que há quase um mês vem destruindo a reputação de profissionais de cinema e televisão ligados a Hollywood. Tencionava mostrar que a vilania não produz apenas o mal e repor em pauta a eterna discussão sobre a contaminação da arte por quem a produz e a validade do que o historiador Martin Jay chama de “álibi estético”. 

Resguardados pelo “álibi estético”, muitos dos acusados de coerção sexual não teriam suas obras (ou aquelas das quais participaram) amaldiçoadas, boicotadas, ou mesmo destruídas, como chegou a ser proposto nas duas últimas semanas. E assim foi que, não para indultar ou relativizar a culpa dos tarados do show business, mas evitar jogar fora a criança junto com a água da bacia e punir com o desemprego uma punhado de inocentes coadjuvantes, artistas da estatura de Kevin Spacey, Hitchcock, Woody Allen, Roman Polanski, Lars von Trier, e até Chaplin (com um escândalo de pedofilia em sua biografia), acabaram na companhia de Caravaggio, Cellini, Wagner, Pound, Eliot, Fra Filippo Lippi, Egon Schiele, Jean Genet e outros vilões do mesmo tope. 

Caravaggio matou um jovem; Cellini liquidou pelo menos duas pessoas; Wagner era antissemita, assim como Pound e Eliot; Lippi raptou e papou uma freirinha, naturalmente virgem; Schiele foi preso por seduzir uma menor; Genet era ladrão. Como rejeitar a arte que esses reprováveis senhores nos legaram? 

Arte e moralidade são atividades distintas. Separar a arte do artista é um “mal necessário”, repetiu na semana passada a psicóloga Peggy Dexter, estudiosa do assunto. Para ela, se mergulhássemos na vida privada de todo artista, deixaríamos de ir ao cinema e de frequentar museus. E, acrescento eu, de ouvir Beethoven pela Filarmônica de Berlim, regida por Wilhelm Furtwängler, com Hitler na plateia.

A questão é complexa e precisa ser contextualizada. Houve um tempo em que os artistas podiam tudo. Eram tidos como seres demiúrgicos, acima do bem e do mal, ainda que uns e outros praticassem o mal com maior frequência. Acabou a imunidade, até os gênios perderam o foro privilegiado. 

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Ficou claro, a partir da execração pública de Harvey Weinstein, que o comportamento sexualmente predatório é uma praga sistêmica, presente em qualquer atividade dominada pela figura masculina, onde o uso do sexo e do poder se prestam—ou se prestavam—a todos os excessos. 

Mas a discussão persiste. 

“Arte, não importa quem a criou, deve ser impermeável a qualquer tipo de punição”, estrilou a polêmica feminista Camille Paglia. “O artista, enquanto pessoa, está sujeito a reprovações e punições por condutas inaceitáveis no campo social, mas sua obra não.”  Seu reparo não foi bem recebido. A maioria das feministas—e não apenas elas—prega um combate irrestrito aos predadores sexuais disseminados por todas as atividades de Trumpolândia. As que já boicotavam os filmes de Woody Allen agora se recusam a rever, por exemplo, Marnie, porque Hitchcock atormentou Tippi Hedren durante as filmagens. E tiraram O Último Tango em Paris de seu carnê de preferências porque Maria Schneider revelou ter-se sentido violentada pelo diretor (Bernardo Bertolucci) ao filmar a célebre “cena da manteiga” sem aviso prévio.

Boicotar artistas depravados é relativamente fácil. Imaginemos, porém, um grande cientista, responsável pela invenção de uma vacina tão importante quanto a Sabin, por exemplo, de repente implicado em denúncias de sedução e, mesmo, de estupro. Quantas pessoas teriam coragem de, em represália, rejeitar sua droga?

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Autoridade em assédios no ambiente universitário, Laura Kipnis recomenda cautela na dosagem da execração e das punições. Não se pode aplicar um castigo tamanho único a ofensas de variada gravidade, nem desconhecer o grau de tolerância a certos padrões de comportamento vigentes 20 anos atrás. Kipnis é a favor de uma hierarquização de penas, inclusive para evitar que um adúltero serial ativo em décadas passadas seja banido das cinematecas. Embora incondicionalmente a favor das vítimas e da punição exemplar dos potentados da mídia que não param de cair em desgraça, ela se pergunta se todos os filmes de Hitchcock merecem ser tirados de circulação por conta de sua misógina relação com algumas de suas atrizes.

“Em que medida esse boicote generalizado não configura uma censura?”, perguntou um blogueiro atento aos sismos da indústria de entretenimento. Sua cobrança veio numa hora inapropriada. Os ânimos ainda estão fervendo. A revolução contra os senhores feudais do machismo tóxico mal começou, as cabeças ainda estão rolando. 

Cada revolução escolhe suas armas de combate: fuzis, canhões, guilhotinas; chegou a vez da exposição espontânea na mídia e do compartilhamento nas redes sociais. Estou com elas, mas não deixarei de rever Marnie nem as comédias de Woody Allen.

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