Depois dos Jogos, Rio tem desafio de afastar histórico de segregação

Para arquiteto, a cidade não deu importância para o planejamento urbano, nem antes nem depois de passar por uma década de obras

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Por Francesco Perrotta-Bosch
Atualização:
Obras no Rio de Janeiro Foto: MARCOS DE PAULA/ESTADÃO

E pensar que, há menos de dois meses, Eduardo Paes era entrevistado ao vivo no estúdio do Jornal Nacional. Lá, fazia um balanço da efusivamente bem avaliada Olimpíada durante a animada cobertura. As aparências davam a entender que ali estava um prefeito exitoso: o homem que executou o que nós mesmos duvidávamos ser capazes de realizar.

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Mas as chamas olímpicas e paralímpicas apagaram-se. A empolgação arrefeceu-se. A cidade voltou à rotina: governo estadual em calamidade pública, aposentados sem receber, milícias e tráfico cada qual com seus tiroteios, a degradante lista é longa. E eis que tudo isso coincide com o calendário eleitoral. A decisão de quem será o próximo alcaide se dá poucas semanas após o fim do intenso ciclo.

Estamos ainda em meados de outubro e o período olímpico parece uma página virada da história carioca. Afinal, a mais contundente resposta dada nas urnas do primeiro turno foi o afastamento do grupo de Eduardo Paes do poder municipal.

Para além das razões de cunho personalista, estava também em jogo o prosseguimento do projeto olímpico de cidade. Em certa medida, rejeitou-se o resultado de anos do Rio como um grande canteiro de obras. Não por acaso, o candidato Marcelo Crivella tem repetido frequentemente o trocadilho “largado” olímpico. Outro indício para tal suposição está nas listas de propostas dos dois postulantes no segundo turno: ambas contêm um menor número de “novidades”, tendo mais promessas de correção das políticas públicas e obras do antecessor – o Rio terá uma espécie de “prefeito ombudsman”.

Nos dois programas do governo em disputa no segundo turno, há uma grande ausência: um plano urbano alternativo. Alguns indicativos podem ser notados. Por exemplo, o Plano Diretor é um instrumento totalmente negligenciado em qualquer debate no Rio de Janeiro (sua última versão é de 2011). Não o corroboram, nem o questionam. Instrumentos de regulação urbanística não estão na ordem do dia.

A alcunha “Porto Maravilha” também é estranhamente omitida nos programas dos candidatos do PRB e do PSOL. A operação urbana consorciada para a zona portuária obteve bilhões de reais na presente década, conseguindo executar transformações radicais e financeiramente dispendiosas, como a seminal demolição da Perimetral.

Se o fluxo rodoviário foi transferido para novos túneis subterrâneos, o principal ganho foi o rés do chão sendo reapropriado pelo pedestre. Após décadas de distanciamento, a Baía de Guanabara e a malha urbana do centro carioca reconectaram-se. Do futuro aquário, caminha-se pela Orla Conde até a Praça Mauá, de lá contorna-se o morro de São Bento, passa-se pela Candelária e pela Praça Quinze até o torreão do Albamar – tudo em vias de pedestres à beira d’água e somente compartilhadas, em parte, pelo novo bonde. Nos dias em que foi “Boulevard Olímpico”, quando as massas populares ocuparam as bordas do centro, percebeu-se a importância do espaço público como lugar de livre vivência e convivência.

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Contudo, se o calçamento aparentemente é tenaz e permanente, a vitalidade da Orla Conde não é garantida a médio e longo prazo. Todas essas obras foram financiadas por meio da venda de Cepacs, que são títulos de permissão do aumento do potencial construtivo em edificações feitas pela iniciativa privada. Agora, estamos no momento crucial em que Cepacs foram vendidas, mas a grande maioria dos terrenos está desocupada. Há em excesso galpões subutilizados e terrenos vagos. O caráter da ocupação da zona portuária ainda está por ser definido. Expondo suas verdadeiras intenções agora ou não, o futuro prefeito terá um papel decisivo nesse destino.

Pode ser que algum dos Marcelos simplesmente aceite as aspirações originais dos executivos da “PPP Maravilha”: torres espelhadas com lajes corporativas de “alto padrão” para grandes empresas, cujos térreos não oferecerão muito mais do que uma elegante portaria. Seria mais um caso de gentrificação somado à redução da atividade urbana aos horários comerciais, vista a ausência da mescla de usos: faltam moradias. O candidato Freixo comentou, en passant em um debate, o incentivo a habitação popular na região do porto. Está correto, mas o objetivo maior deve ser, para além do uso misto, a mistura de classes sociais. Para viabilizar quaisquer boas intenções e de fato diferenciar-se do PMDB para além de bravatas eleitorais, o futuro prefeito terá de esclarecer como vai lidar com uma herança da era Paes: a Concessionária Porto Novo (formada por Odebrecht, OAS e Carioca Engenharia), cujo contrato com a prefeitura vai até 2026. Esse posicionamento revelará as intenções dos postulantes em relação ao Porto Maravilha.

Enquanto na região central se prometia uma cidade para a escala do pedestre, grande parte das verbas municipais destinava-se à região da Barra da Tijuca, onde foi construído o maior número de equipamentos esportivos para os Jogos Olímpicos. Enquanto em um dos lados do Rio de Janeiro pensava-se em uma cidade mais compacta, valorizando a infraestrutura e o patrimônio existentes, na zona oeste foram feitas novas vias expressas, ampliou-se o número de faixas de carros nas avenidas existentes, potencializou-se uma antiga matriz de desenho urbano em que a vida da calçada não tem vez. O – eleitoralmente rejeitado – projeto olímpico de cidade foi eminentemente um projeto bipolar.

Esse espraiamento da infraestrutura urbana pela baixada de Jacarepaguá tem como subtexto o desejo imobiliário de valorização de terras. O maior símbolo dessa “estratégia público-privada” é a Vila Olímpica, que já assumiu seu nome definitivo e coerente: Ilha Pura. Mais um segregacionista e antiurbano condomínio-clube, envolto por longos muros e uma portaria repleta de seguranças para proteger os 31 prédios com 3.604 apartamentos avarandados. O nome explicita: qualquer vínculo de urbanidade é negado.

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Estranhas são as declarações do ex-ministro da Pesca, Crivella, a respeito do Parque Olímpico da Barra. No último debate, ele afirmou que a maioria das arenas esportivas “vai ser demolida”. A desinformação do postulante à prefeitura é preocupante, visto que somente se planeja desmontar a Arena de handebol (projetada para se reconfigurar em quatro escolas municipais) e o Estádio de Natação. Permanecerão o Centro de Tênis, as Arenas Cariocas 1, 2 e 3, o Velódromo e a imensa e sinuosa aleia central do Parque Olímpico – que é o parque em si. Não obstante, tudo isso é alvo de uma licitação, a qual permitirá a uma única entidade converter esses equipamentos para fins educacionais e comerciais, podendo explorá-los por 25 anos. Tal licitação foi protelada em duas ocasiões, tendo ocorrido o último adiamento no início do mês, sem previsão de novo cronograma. Logo, é bem possível que as definições do modelo de licitação e de quem operará o Parque Olímpico sejam feitas no próximo mandato. Não dá para alegar falsas demolições como pretexto para reduzir a relevância do lugar.

O candidato Crivella também assumiu que o Parque Olímpico é “um grande empreendimento imobiliário”. Há de se concordar, visto que os monumentais planos asfaltados para a logística das competições e transmissões estão nas mãos das grandes construtoras, e o que lá farão ainda é nebuloso. Se reproduzirem a lógica “ilha pura” de condomínios-clube, o Parque Olímpico será urbanisticamente destruído. Porém, não cabe a um postulante da prefeitura lamentar que “o grande legado da Olimpíada não foi para os cariocas, mas para as empreiteiras” – afinal, ele pode e deve lançar mão de instrumentos de regulação urbanística para controlar como serão as edificações ali. Se há alguém que pode reverter a trajetória do desastre para o futuro do Parque Olímpico, essa pessoa é o futuro prefeito. Senhores candidatos, não lavem as mãos.

Alguém argumentará que o lado positivo do período olímpico para as zonas oeste e norte do Rio foi a sistematização da rede de transporte com os BRTs. A Transcarioca atende vários bairros do subúrbio, requalificando vias por décadas abandonadas. Seu problema é que, mesmo ainda recente, os ônibus ficam superlotados em horários de pico. Já a Transolímpica e a Transoeste têm trechos úteis e diversas estações em áreas ermas, prontas para futuros empreendimentos. Ficou para a futura administração a conclusão da Transbrasil – corredor de ônibus fundamental a organizar a miríade de linhas que passa pela avenida Brasil.

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A grande obra de transporte público de alta capacidade foi a Linha 4 do metrô, ligando a Barra da Tijuca à zona sul e todo sistema metroviário existente. O projeto executado tem uma desconfiável peculiaridade: a Linha 4 é uma extensão da Linha 1. Ou seja, se na primeira estação (Jardim Oceânico) entrasse todo contingente de pessoas que se desloca diariamente da zona oeste em direção ao centro, não haveria espaço para embarcar nos vagões estando nas estações intermediárias da zona sul. Porém, isso não está acontecendo pelo fato de a integração do BRT Transoeste com a Linha 4 do metrô (um acordo entre prefeitura e Estado) ser a mais cara do Rio de Janeiro (R$ 7). Assim, várias pessoas escolhem trajetos mais demorados e menos confortáveis, a fim de terem um gasto menor com transporte – deduzimos evidentemente que tal escolha seja feita por cariocas de menor poder aquisitivo. De tal modo, moradores mais ricos, do Leblon e Ipanema, estão conseguindo usufruir do metrô na porta de casa. Não chega a ser surpreendente para quem já entrou nas novas estações Antero de Quental, Jardim de Alá ou Praça Nossa Senhora da Paz, com seus corredores superdimensionados (escandalosamente mais largos que o necessário e mesmo comparativamente com outras estações) e detalhes em aço escovado. Nada mais esclarecedor que quem more longe pague mais caro para utilizar essas estações.

Há um modo de raciocínio que assumiu a desigualdade como parâmetro dos projetos olímpicos. Seja quem vier a ser o novo prefeito, se quiser se diferenciar verdadeiramente do rejeitado PMDB, são menos necessárias as agressivas falas eleitoreiras, e mais úteis posicionamentos claros. Afinal, já dizia Tom Jobim que o Brasil não é para principiantes. Certamente, o Rio pós-olímpico corrobora tal idiossincrasia.