Desfile de macaquices

St. Valentine, Halloween, Underwear Day: até onde vai esta nossa mania de importar baboseiras?

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

A rodoviária de Brasília foi alvoroçada na terça-feira por uma tropelia de rapazes de cueca e moças de calcinha e sutiã. Eram modelos celebrando o Dia Nacional da Roupa de Baixo. Pelo terceiro ano consecutivo. Ou seja, desde 2007 que entre nós se promove a roupa de baixo numa passarela pública. É frivolidade importada, que ainda mais ridícula soaria se aqui também se chamasse, como em seu país de origem, Underwear Day. Quousque tandem abutere patientia nostra?, perguntaria Cícero (o orador romano, não o padim cearense), se exposto às nossas constantes macaquices. Oito dias antes, o que macaqueamos? O St. Valentine?s Day. Se temos, há um tempão, nosso próprio Dia dos Namorados (12 de junho), para que adotar o Dia dos Namorados dos gringos? Mas já o adotamos, como já havíamos adotado o Halloween. Não sei se é modismo exclusivamente paulistano, mas só na capital paulista vi hotéis e restaurantes oferecendo ceias e pernoites românticos no Dia de São Valentim. Pior seria se, em homenagem àquela data, algum traficante paulista resolvesse fuzilar meia dúzia de rivais na garagem de algum prédio, como Al Capone fez em Chicago, em 14 de fevereiro de 1929, o mais célebre St. Valentine?s Day da história. Mas que foi ridículo, foi. Para aplacar minha indignação, fiz o que melhor se pode fazer no Dia de São Valentim: rever a comédia Quanto Mais Quente Melhor. Indignação é exagero. Graciliano Ramos, sim, ficaria realmente indignado, pois era um nacionalista linha dura, que implicava até com o futebol ("roupa de empréstimo que não nos serve"), incentivando a mocidade da terra a se exercitar em esportes nacionais, "sem mescla de estrangeirismo", como o murro, o cacete e a faca de ponta. Além de vociferar contra a incorporação do Halloween e do St. Valentine?s Day ao nosso calendário de festividades, o Velho Graça já teria produzido inúmeras catilinárias contra o uso abusivo de palavras inglesas em nosso dia-a-dia. Nisso teria minha solidariedade. O futebol nacionalizamos, assim como outras coisas que a muitos talvez pareçam brasileiras da gema. O carnaval é um exemplo; o 1º de Abril, outro. Mas não nos faz falta o Dia das Bruxas (até porque, como lembraria o Velho Graça, temos o Saci Pererê e o Curupira), nem o Dia da Roupa de Baixo (até porque os americanos é que estão ficando sem dinheiro para comprar a roupa de cima); e muito menos necessitamos de outra data para celebrar o namoro. Se baixarmos a guarda, mais efemérides irrelevantes e meramente mercantis darão cria por estas bandas; como de praxe, importadas dos Estados Unidos, de onde não veio o 1º de Abril, invenção francesa, mas vieram o Dia das Mães, dos Pais, dos Avós - e, quase, o da Sogra, de que só nos livramos por conta de nossa proverbial implicância com a espécie celebrada pelos americanos no quarto domingo de outubro. Em matéria de celebrações desimportantes, dispensáveis, esquisitas e estapafúrdias, os americanos são imbatíveis. Na pátria do Thanksgiving, um feriado respeitável, diga-se, praticamente tudo tem seu dia: do queijo suíço (2 de janeiro) ao champanhe nacional (31 de dezembro). Só em janeiro, encontrei mais duas comemorações esdrúxulas : o Dia do Banho de Espuma e o Dia de Não Fazer Nada (Nothing Day, no original). Este mês tivemos - ou melhor, eles tiveram - o Dia da Marmota (2, pano de fundo do filme Feitiço do Tempo), seguido do Dia do Bolo de Cenoura. Outros homenageados do mês: a pipoca (dia 4), o iogurte (6), a dor de dente (9), o guarda-chuva (10), a camiseta branca (11), a panqueca (12, naturalmente obscurecida pelo aniversário de Lincoln), e a roda-gigante (14). Quinta-feira próxima, uma dupla celebração: da garrafa térmica e do pistache. Hoje? É o aniversário de George Washington, feriado nacional. Não lhe daremos a mínima. Hoje, para nós, é só carnaval; Washington, este ano, nem personagem de escola de samba é, se é que algum dia o foi. No carnaval, macaqueamos pouco ou quase nada. Mas nem sempre foi assim. Na segunda metade do século 19, quando nos derretíamos pela França, frequentávamos cabaret e café chantant, e nos referíamos ao high society como haute gomme, nosso carnaval imitava o de Nice e Veneza. Tínhamos bal masqué, nos fantasiávamos de pierrô (pardon, pierrot) e colombina - até os confetes animavam a fuzarca em francês. Desfilando pelo centro do Rio de Janeiro como se estivessem num corso romano ou no Promenade des Anglais, as Grandes Sociedades que então dominavam a folia carioca eram formadas por comerciantes nascidos na Europa ou descendentes diretos de europeus, extremamente ciosos de sua distinção social, "pessoas delicadas e do mais fino trato", no dizer de um embasbacado cronista da época. A primeira delas, o Tenentes do Diabo, surgiu com Euterpe (a musa grega) no nome e falsos zuavos (soldados argelinos a serviço do colonialismo francês) em suas fileiras. Outra sociedade, a dos Fenianos, extraiu seu nome dos soldados irlandeses católicos liderados por Cromwell. Manter à margem o populacho e suas impurezas musicais, conter seu entusiasmo e excessos, pareciam ser estes os principais objetivos daquelas agremiações. Em 1884, o Club dos Democráticos distribuiu um folheto de propaganda com a seguinte bazófia: "Cabe-nos a glória de ter sido sempre os primeiros no torneio do espírito, mas do espírito fino, e não desse espírito grosseiro e canalha que inebria as crioulas baianas e comove as pretas mina". Hoje enquadrariam o clube na Lei Afonso Arinos. A ascensão dos ranchos, no século 20, não alterou o panorama. Continuamos suspirando pelo velho mundo e pelas culturas milenares. Em 1914, surgiu no bairro carioca do Catete um rancho despudoradamente chamado Corbeille de Fleurs. Na mesma década e na seguinte, os desfiles que paravam a avenida não eram suntuosos apenas na aparência. Seus enredos se reportavam a reinados da Turquia, à corte dos doges, ao anel dos Nibelungen, a Salomão e à rainha de Sabá, a Átila, o huno. Custamos um bocado para nos livrar dessa subserviência, que até as escolas de samba contaminou. Na tarde de sexta-feira, o presidente da Vai-Vai foi visto na TV Globo explicando que a quadra onde sua escola de samba ensaia virou um "point". Point à inglesa, não à francesa ("puan"). Porque o modelo agora não vem mais da Europa. Mas nós continuamos bocós.

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