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Diante da realidade insuportável

Um mundo com menos gente seria um lugar bem melhor para lidar com as mudanças climáticas

Por John Gray
Atualização:

Se alguma vez houve um exemplo de que a humanidade não consegue suportar tanta realidade, esse exemplo é o atual debate sobre as mudanças climáticas. Ninguém sensato ainda tem dúvidas de que o mundo esteja se aquecendo, nem que essa mudança seja desencadeada pela atividade humana. Fora o grupo minguante que rejeita as evidentes conclusões das ciências, todo o mundo aceita que enfrentamos um desafio sem precedentes. Ao mesmo tempo, existe a crença difundida de que esta é uma crise que pode ser solucionada por atitudes que fazem com que nos sintamos bem - tais como comer alimentos orgânicos, instalar uma turbina eólica no telhado ou recusar-se a viajar de avião. Quando se trata de decidir o que deve ser feito, a maioria das pessoas - entre elas a maioria dos ambientalistas - recua diante do desconforto que acompanha o pensamento realista. George Bush parece ter sido convencido de que a ciência climática não é uma conspiração da esquerda para destruir a economia americana. No entanto, com o restante de nossos líderes políticos, continua a insistir que não há limites para o crescimento. Desde que adotemos novas tecnologias que supostamente são solidárias ao meio ambiente - como os biocombustíveis -, a expansão econômica pode continuar como antes. Na outra ponta do espectro, os ambientalistas põem fé no crescimento sustentável e na energia renovável. A raiz da crise ambiental, dizem eles - e nisso concordam com Bush - é a adoção dos combustíveis fósseis. Se nós simplesmente passarmos a usar energia solar, eólica ou advinda das ondas do mar, tudo estará bem. Em termos políticos, Bush e os ecologistas não poderiam estar em lados mais opostos. Mas eles se unem quando se trata de resistir ao aspecto mais básico da crise ambiental - o fato de que ela não pode ser resolvida sem uma grande redução do impacto sobre a Terra. Isso significa frear a produção dos gases de efeito estufa. Mas aqui as políticas da moda podem ser contraproducentes. A mudança para os biocombustíveis, comandada por Bush, mas que também está em andamento em várias partes do mundo, envolve mais destruição de florestas tropicais - um regulador natural do clima. Reduzir as emissões ao preço de destruir os mecanismos naturais do planeta para absorvê-las não é uma solução. É receita para a calamidade. Entretanto, as receitas-padrão dos defensores do meio ambiente não são muito melhores. Variadas fontes renováveis não são tão eficazes nem tão amigáveis com o ecossistema como tentam nos convencer. Usinas eólicas ineficientes e de aparência desagradável não vão permitir que abandonemos os combustíveis fósseis, e a energia hidrelétrica em larga escala tem grandes custos ambientais. Usar métodos orgânicos na produção de alimentos pode representar benefícios substanciais em termos de bem-estar dos animais e redução de custos com combustível. Mas nada faz para deter a devastação de regiões ainda não cultivadas que acompanha a expansão da agricultura necessária para alimentar uma população humana em franca expansão. Portanto, os planos favoritos dos ambientalistas convencionais não são assim tão diferentes da política de "continuar como está" de Bush. Em todos os casos, o resultado final é um planeta destituído de diversidade, com a humanidade exposta a um ambiente cada vez mais hostil. Até certo ponto, a tecnologia talvez seja capaz de substituir a biosfera que vem sendo destruída. Mas, como um paciente obeso mantido com a ajuda de aparelhos, estaremos apenas cumprindo nossa sobrevida. Um dia a máquina pára. O fato desconfortável, ignorado ou negado por ambos os lados do debate sobre meio ambiente, é que o estilo de vida com consumo intenso de energia do tipo desfrutado nas partes ricas do mundo não pode ser estendido a uma população de 9 ou 10 bilhões de pessoas - número previsto em estudos da ONU para meados deste século. Em termos de recursos, os números da população já são insustentáveis. O aquecimento global é o outro lado da industrialização mundial - o efeito colateral da viagem para a globalização. E as reservas de petróleo e gás natural das quais a indústria depende estão atingindo seu máximo justamente no momento em que a demanda por elas vem aumentado rapidamente. Ao contrário do que pregam os ambientalistas, não há a mais remota perspectiva de que o mundo renuncie ao uso de combustíveis fósseis. Pergunte a qualquer economista competente especializado em energia: vai descobrir que nenhuma expansão de fontes de energia renovável pode atender à demanda por energia que está sendo gerada na China e na Índia. De qualquer forma, será que alguém realmente espera que os países que estão enriquecendo com o petróleo - Rússia, Irã, Venezuela e Estados do Golfo - abram mão dele? Enquanto houver suficiente demanda, esses países continuarão a extrair combustíveis fósseis, sejam quais forem as conseqüências para o clima global. O único passo à frente é coibir a necessidade por combustíveis fósseis, ao mesmo tempo em que os torna mais limpos, já que não há maneira de abrir mão deles totalmente. Isso significa fazer uso total de tecnologias que muitos ambientalistas vêem com um horror supersticioso. A energia nuclear tem problemas bem conhecidos de segurança e de descarte de resíduos e não é uma panacéia universal. Mas o pensamento convencional dos ambientalistas é de demonizá-la ainda mais. E embora a energia solar tenha potencial, nenhum tipo de energia renovável consegue substituir os combustíveis sujos do passado industrial. Se rejeitarmos a opção pela energia nuclear, inevitavelmente acabaremos voltando para o carvão. É verdade que estão surgindo tecnologias capazes de torná-lo mais limpo. Mas ainda assim não há motivo para virar as costas para a energia nuclear, que está virtualmente isenta de emissões. Raciocínio semelhante se aplica ao cultivo de transgênicos. A engenharia genética envolve uma intervenção do homem em processos naturais cujos riscos não são ainda plenamente conhecidos. Em conseqüência, a alternativa possível é continuar com a agricultura no estilo industrial, cujo impacto destrutivo sobre a biosfera já está bem claro. Qualquer solução viável para a crise ambiental envolve processos de alta tecnologia. O objetivo não deve ser dominar a natureza, nem transformá-la num mero recurso para ser explorado pelos seres humanos - como Bush e os ambientalistas, de formas diferentes, acabam fazendo. Dadas as aspirações legítimas das pessoas dos países em desenvolvimento, somente uma estratégia altamente tecnológica tem alguma chance de reduzir as pegadas do ser humano. Mas também será necessário quebrar aquilo que se tornou o tabu máximo e enfrentar a realidade da pressão imposta pela população. Ativistas de defesa do meio ambiente, economistas partidários do livre mercado e fundamentalistas religiosos talvez não pareçam ter muito em comum. Mas todos eles concordam que não pode haver superpopulação, ou nada que não possa ser resolvido com melhor distribuição, crescimento mais rápido ou mudanças nos valores humanos. Na realidade, o eternamente impopular reverendo Malthus estava perto da verdade quando, no final do século 18, argumentou que o crescimento populacional acabaria ultrapassando a produção de alimentos. A suposição era que a agricultura industrial deveria tornar a fome impossível. Mas acontece que essa agricultura tem dependido fortemente do petróleo barato e, com a perda de terras agriculturáveis como resultado da mudança para biocombustíveis, os limites à produção de alimentos estão voltando. Muito mais do que planos fantásticos para energia renovável, precisamos garantir que contraceptivos e aborto estejam disponíveis gratuitamente em todos os lugares. Um mundo com menos gente seria um lugar bem melhor para lidar com as mudanças climáticas do que o mundo maciçamente superpovoado para o qual estamos rumando agora. A despeito do irrefreável aquecimento global, ainda vale a pena lutar por um mundo onde os seres humanos possam viver. Mas isso requer uma capacidade de pensamento realista e duradouro, que não é o ponto forte do movimento ambientalista. Assim como as classes políticas, os defensores do meio ambiente se recusam a aceitar a realidade. Não existe um conserto técnico para a condição humana. Não obstante, é indispensável o uso inteligente da tecnologia para lidar com os transtornos no meio ambiente que agora são inevitáveis. Seria uma ironia se, por causa de sua hostilidade irracional contra as soluções de alta tecnologia, os ambientalistas acabassem sendo um ameaça para o planeta tanto quanto George Bush. *John Gray é autor, entre outros, de Falso Amanhecer; Al Qaeda e o que Significa Ser Moderno; e Cachorros de Palha (todos publicados pela editora Record)

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