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Diários da poeta Sylvia Plath recebem nova edição

Simultaneamente, nos EUA, a correspondência da escritora está sendo publicada

Por Paulo Nogueira
Atualização:

Há autores tão talentosos e singulares que até seus textos não literários, como cartas e diários, acabam assumindo esse status. Casos dos diários de Samuel Pepys, um incomparável retrato da Londres do século 17. Ou os de Jonathan Swift, de Virginia Woolf, de André Gide ou Kafka (com a definição kafkiana de literatura: “Um livro deve ser um machado que quebra o mar gelado dentro de nós”). Ler um diário assim é como ser um voyeur convidado. Daí o aforismo de Oscar Wilde: “Nunca viajo sem o meu diário – devemos ter sempre uma coisa sensacional para ler no trem.”

Gwyneth Paltrow interpretou Sylvia Plath no cinema Foto: Bill Kaye/David Appleby

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Por coincidência, acabam de ser publicadas nos EUA as cartas de Sylvia Plath e no Brasil seu diário, ambos organizados por Karen V. Kukil, curadora do espólio literário da poeta (e também de Woolf, igualmente escritora e suicida). 

Fazia um frio de rachar na manhã londrina de 11 de fevereiro de 1963. Numa casa em que vivera o poeta W. B. Yeats (uma placa na fachada assinala o fato), Sylvia coloca duas canecas de leite e um prato com fatias de pão ao pé de seus filhos pequenos, Frieda e Nicholas, que dormem. Apesar de nevar copiosamente, abre a janela de par em par. Sai do quarto, fecha a porta e veda os vãos com toalhas molhadas. Vai para a cozinha, abre o forno, liga o gás e pousa a cabeça lá dentro.

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Tinha 30 anos. Fora casada durante seis com o também poeta (e dos bons) Ted Hughes, então com 36 anos. Há cinco meses já não viviam juntos, desde que surgira outro rabo de saia, Assia Wevill. Separaram-se com sons e fúrias. 

Logo depois da morte da poeta, algumas feministas produziram hagiografias erigindo Plath em mártir e Hughes no capeta. Talvez essas autoras não tenham lido nem os poemas, nem os diários nem as cartas de Plath, que professam coisas como “sem um homem, a mulher está incompleta”. Ou as mulheres solteiras têm “ácido de limão azedo”, e liberam “um odor patético e estéril”. Somente “através do parto a mulher alcança a verdadeira realização”. Ou o célebre verso do poema Daddy: “Toda mulher adora um fascista.” 

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Com Hughes (que não era nenhum santinho) convertido em saco de pancadas, floresceu até uma piada macabra e apócrifa, de que ele teria dito: “Enfiar a cabeça lá foi a única coisa boa que Sylvia fez no nosso fogão em todos os anos de casados.” O Independent publicou um depoimento de um vizinho, jurando que Hughes tinha dado uma festa uma semana após o suicídio da mulher – e no próprio local. Tanto o vizinho quanto o jornal foram obrigados a se retratar. Uma casa de Hughes foi incendiada. Hoje a poeira baixou, em parte devido ao estupendo livro de Janet Malcolm sobre Plath, A Mulher Calada (Cia. das Letras).

Já foi dito que os diários de Plath, que vão de 1950 (deixa a casa da mãe) a 1962 (leciona e escreve na Nova Inglaterra) são uma longa nota de suicídio. São muito mais: incluem poemas, excertos de prosa, sonhos, ruminações metafísicas, embriões de romances, desenhos, fofocas apetitosas, esboços para um filme e as leituras (Dostoievski, Joyce, Woolf). Para os tietes da obra dela, entre os quais me incluo, é uma leitura apaixonante, deprimente, arrebatadora – com todo aquele desespero sustentado por palafitas.

Hughes sumiu com duas seções dos diários, “para proteger nossos filhos”. Isto apesar de na introdução de uma coletânea de prosas de Plath ele próprio ter assinalado a importância daqueles para a composição de Ariel, o livro de poemas em que Plath deu o último banho de loja na manhã em que se matou. E não adiantou nada: a tragédia dessa gente só perde para as famílias dos Átridas (que geraram todas as tragédias gregas) e do filósofo Wittgenstein, cujos três irmãos se suicidaram.

Outro famoso verso de Plath funciona quase como um mote lúgubre: “Morrer/ é uma arte. /Como tudo mais, faço isso excepcionalmente bem.” Seis anos depois do suicídio da poeta, Assia, a segunda mulher de Hughes, se matou do mesmo jeito – só que levou com ela a filhinha do casal, de quatro anos. E, em 2009, aos 47 anos, Nicholas, o filho de Plath e Hughes, se enforcou no Alasca. 

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É óbvio que Plath arrastava um bonde por Hughes. Nos diários ela conta como o conheceu numa festa. Sylvia chegou de porre, e podemos sentir a radioatividade de plutônio enriquecido: “Aquele rapaz alto e moreno, cujo nome quis saber assim que entrei, mas ninguém me disse, era Ted. Levou-me para uma sala dos fundos, a porta se fechou e ele despejou conhaque num copo e eu despejei conhaque no lugar onde estava a minha boca da última vez que me lembro dela. Quando me beijou mordi seu lábio com tanta força que o sangue lhe escorreu pelo queixo.”

Após décadas sem dar um pio, Hughes publicou, em 1998, meses antes de sua morte (natural) o volume de poemas Cartas de Aniversário (Record). Em inúmeros versos, interpela Plath diretamente, no tempo presente, como se estivesse viva. 

Qual o lugar de Plath no cânone? Em 1972, Irving Howe declarou que ela não passava de “uma poeta menor interessante”. 54 anos depois do suicídio dela, este veredito soa quase bisonho. Hoje, Plath está no mesmo panteão de Adrienne Rich, Laura Riding, Elizabeth Bishop e Anne Carson (esta última, ao saber que o romance A Redoma de Vidro tinha sido publicado 28 dias depois do suicídio de Sylvia, resmungou: “Que bela jogada de marketing!”). Novas gerações de críticos e leitores se renderam à obra de Plath e a sua poética idiossincrática, crispada, imbuída de imagens patibulares, mas por isso mesmo pungente e visceral até dizer chega. Como: “Das cinzas/ Ergo-me com meu cabelo ruivo/E devoro homens como ar.” Como observou Robert Lowell no prefácio a Ariel: “Esta poesia e esta vida não são uma carreira – elas nos dizem que a vida, mesmo quando disciplinada, simplesmente não vale a pena.”

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Claro que o suicídio na juventude transfigurou Plath num mito pop. Foi chamada até de Marilyn Monroe lírica, seguindo a dica de James Dean: “Viva depressa, morra cedo e deixe um cadáver bonito.” Foi encarnada no cinema por Gwyneth Paltrow. Ressalvando as numerosas exceções, poetas costumam ser mais precoces e também se esgotar mais rápido que prosadores. O clichê é Rimbaud, mas há também o prodigioso austríaco Hugo von Hofmannsthal, que, tendo escrito seus poemas duradouros ainda adolescente e morrido quase sexagenário, induziu um crítico a exclamar: “Que poeta ele teria sido se tivesse morrido aos 17 anos!” 

Com Plath, não precisamos de mais nada. Como dizem os versos de Lady Lazarus citados em Mad Men: “Não foi que não pudesse prosperar, nasceu/Com tudo, menos a vontade./Que pode ser tão torta quanto uma asa.”

*Paulo Nogueira é escritor e jornalista, autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Editora Intermeios) 

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