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Dois quixotes sem manchas

Fernando Gabeira, no Rio de Janeiro, e Ralph Nader, nos EUA, são os candidatos do otimismo

Por Sérgio Augusto
Atualização:

Desocupado leitor, ocupe-se. Pense com otimismo no futuro. Talvez valha a pena, se sua alma não for pequena. Faz hoje uma semana que a grande nova cintilou na coluna de Merval Pereira n'O Globo: "Gabeira vem aí". Um velho sonho de milhares e milhares de habitantes do Rio afinal se concretizara: Fernando Gabeira aceitara candidatar-se a prefeito da cidade que há quatro décadas adotou como sua. Se em 1808 o Rio virou corte, em 2008 pode virar um modelo - não de metrópole, pois o atual prefeito, Cesar Maia, só passa o ponto em janeiro de 2009, e as mudanças de que o Rio desesperadamente carece exigem meses, talvez anos, de uma administração exemplar -, mas um modelo de savoir faire político. Saber fazer é votar bem. A campanha para convencer Gabeira a disputar seu primeiro cargo administrativo já vinha rolando na internet (sobretudo no weblog de Pedro Doria) e ganhando cada vez mais ímpeto entre amigos ou simples admiradores do deputado do PV. Alguns até já sonharam com ele na Presidência da República, quimera inflada com a repercussão nacional de seu inesquecível arranca-rabo com o então deputado e presidente da Câmara Severino Cavalcanti. Gabeira, porém, refugava. Numa conversa que tivemos há dois anos, ele se confessou enojado com a política nacional e propenso a mudar de profissão. Se já era numeroso o exército de homúnculos a combater, como deputado, que pestilências não teria de enfrentar à frente de uma prefeitura? Fruto de uma frente tripartidária (PV-PSDB-PPS), a ser sacramentada nesta terça-feira, com as bênçãos dos morubixabas tucanos, a candidatura de Gabeira será, como bem disse Elio Gaspari, "um sopro de inteligência na campanha eleitoral de uma cidade que parece entregue a um condomínio de caciques, comendadores e poderosos chefões". Há pelo menos 33 anos que o Rio vem sendo sistematicamente solapado por uma estirpe de governantes relapsos ou mal-intencionados. Entre Marcos Tamoio (prefeito de 1975 a 1979) e Cesar Maia (no poder desde 1993), foram 12 alcaides e governadores, com uma única exceção de competência: Israel Klabin, que só ficou um ano na prefeitura. Até recentemente, as perspectivas para as eleições de outubro próximo eram as mais sinistras. O fascistóide Wagner "Escracha, minha poliçada" Montes liderava as pesquisas para a sucessão de Cesar Maia. Pré-candidato pelo PDT, tão logo Gabeira ameaçou subir ao ringue, jogou a toalha, deixando o eleitorado de direita inteirinho para o senador evangélico Marcelo "É só chamar Jesus" Crivela, da aliança PRB-PTB. Sem Montes, o PDT pode juntar-se ao PCdoB e ungir Jandira Feghali, que, se tiver um mínimo de acuidade política, não aceitará dividir a oposição; conselho também válido para Chico Alencar, pré-candidato do PSOL, um purista em apuros. O PT insistirá com o deputado estadual Alessandro Molon. E Cesar Maia, com a deputada Solange Amaral, pré-candidata do DEM-PMDB, para desespero do secretário de Esportes e de Turismo do Estado, Eduardo Paes, cujo maior feito político foi ter mudado de agremiação quatro vezes em nove anos. Paes ainda acaba filiado aos Fenianos. Embora tenha sido o deputado mais votado do Rio nas últimas eleições, Gabeira deve enfrentar resistência no eleitorado mais bronco da Zona Oeste, onde será satanizado pela turma do dízimo como um enviado do demo, a favor do aborto, da descriminalização das drogas e das prostitutas. Mas até essa massa de poucas luzes pode, nos próximos seis meses, render-se aos sortilégios da decência de Gabeira, ao seu jeito quixotesco de encarar a realpolitik e desmoralizá-la. Mesmo que não vença, só sua presença na disputa coloca o pleito num patamar everestiano, atraindo às ruas correligionários da gema, que agitarão bandeiras "sem aquela cara de quem está esperando um lanche e R$ 50", para usar outra imagem de Elio Gaspari. Gabeira até acha sua eleição viável. Difícil será governar sem uma poderosa corrente de solidariedade e fiscalização, absolutamente imperiosa para anular as manhas capciosas da Câmara Municipal do Rio, uma das mais fisiológicas e corruptas do País. Sua plataforma já está esboçada: uma campanha limpa, para não sujar a cidade, e transparente, com todas as contas registradas na internet; um governo de competência, não de máquina partidária, empenhado em conter a desordem urbana, impulsionar o desenvolvimento econômico (em associação com a iniciativa privada), e educar para a cidadania (para começar, nada de xixi nem lixo nas ruas). Enquanto isso, nas eleições americanas, outro candidato-surpresa saía das sombras. Mas sem a mesma recepção festiva concedida a Gabeira. Em parte porque seus adversários não se chamam Crivela, Molon e Solange, mas Obama, McCain e Hillary, outro nível. A entrada do intimorato Ralph Nader na corrida presidencial americana soou, à primeira vista, como um despropósito, uma pirracenta ego trip, uma manobra divisionista. Comentaristas e estrategistas políticos dele escarneceram impiedosamente. George Stephanopoulos (da rede ABC) debochou: "O anúncio da candidatura foi o ponto culminante de sua campanha". Ou "o ponto mais baixo de sua carreira", na avaliação dos jornalões New York Times, Los Angeles Times e Washington Post. "Os eleitores não vão repetir o mesmo erro de novo", increpou Chris Lehane, ex-secretário de imprensa de Al Gore, querendo dizer que Nader não conseguirá fazer com Obama ou Hillary o que fez com seu ex-patrão em 2000, quando conquistou 97 mil votos na Flórida, que custaram a eleição de Gore. Charlie Black, principal conselheiro da campanha de McCain, previu que Nader terá menos de 1% dos votos. "Devagar, pessoal", advertiu Douglas Schoen, no Washington Post do domingo passado. Nada evidencia, escreveu Schoen, que a eleição deste ano será uma repetição da de 2004, quando Nader conseguiu apenas 0,038% do voto popular. São outras e melhores as circunstâncias para qualquer candidato independente e de um terceiro partido. A própria candidatura de McCain é uma evidência de que o sistema não parece indiferente a independentes e azarões. Pesquisa do grupo Luntz Maslanski revelou que 81% do eleitorado americano simpatizam com a idéia de votar no candidato de um terceiro partido. Nader, uma espécie de Gabeira americano, cavaleiro andante das boas causas, defensor dos consumidores e bicho-papão das grandes corporações, pode empatar ou mesmo superar a performance de oito anos atrás, quando ficou com 2,75% dos votos populares. A Rasmussen Reports estimou em 4% o potencial de votos de um independente com o perfil de Nader, e entre 15% e 30% para uma alternativa mais ao centro, menos dada a polêmicas. Mesmo que não chegue a tanto, Nader terá dado o seu recado, plantado, mais uma vez, a semente de um necessário terceiro partido, e influenciado no comportamento dos candidatos democrata e republicano. Pois seus alvos, como os de Gabeira, não são moinhos de vento.

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