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Dossiês do FBI sobre escritores são reunidos em livro

Truman Capote, James Baldwin, Ayn Rand e Hannah Aredt estão entre os investigados

Por Sérgio Augusto
Atualização:

No frenesi de delações e acusações generalizadas que tomou conta do Brasil, nos últimos tempos, e das conspirações em transe e trânsito nas redes sociais, se não reconforta ao menos nos ensina coisas úteis a leitura de um livro como Writers Under Surveillance: The FBI Files (Escritores Vigiados: os Arquivos do FBI)

O escritor e jornalista Truman Capote foi um dos nomes na lista negra do FBI Foto: TRUMAN CAPOTE LITERARY TRUST

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Úteis, acima de tudo, porque as perseguições nele descritas e documentadas lembram as que o Estado Novo e a ditadura pós-64 aqui praticaram sistematicamente e seus mais aloprados avatares sonham em restaurar, não apenas contra escritores. Que, aliás, não foram os únicos, nem os mais vigiados e molestados pelo FBI (Federal Bureau of Investigation), a PF dos Estados Unidos, durante os 37 anos de reinado de J. Edgar Hoover. 

O show business e o mundo acadêmico também sofreram razias ditadas pelo desvario anticomunista – com sua versão Guerra Fria de “universidade sem partido” e “cinema sem ideologia” –, com maior ímpeto e abrangência no auge do macarthismo, a lepra patriótica que destruiu vidas e reputações, inclusive a de seu próprio mentor, o corrupto e alcoólatra senador Joseph McCarthy, que um dia conheceu o opróbrio a que fazem jus todos os tartufos e uma cirrose hepática o encaminhou a uma tumba no Wisconsin.

Um site cooperativo e sem fins lucrativos (MuckRock.com), que desde 2010 divulga dossiês do FBI, valendo-se do Foia (Freedom of Information Act), precursor da nossa Lei de Acesso à Informação, criada em 2011, mas sob ameaça de drásticas mudanças pelo atual governo, foi o balão de ensaio de Writers Under Surveillance. 

Editado por J. Pat Brown, B.C.D. Lipton e Michael Morisy, o livro, lançado pela MIT Press quatro meses atrás, reproduz cópias fac-similadas de dossiês de 16 escritores – de Hannah Arendt a Gore Vidal –, com pequenos textos introdutórios e um posfácio dando conta das ações do Bureau após a festejada morte de Hoover, em 1972. 

Hoover foi o ogro supremo da repressão na América, o Beria ianque, a Nêmesis de gângsteres e dissidentes políticos. Montou o próprio feudo, mantido à custa de pressões, chantagens e vinganças pessoais. À frente de um sistema de denúncias eticamente pernicioso, consolidou um poder paralelo ao de oito presidentes da República, o último dos quais, Richard Nixon, só se referia a ele como “that old cocksucker”, que me recuso a traduzir com as crianças na sala.

Sua fixação em artistas e escritores tinha uma explicação razoável: considerava-os perigosos por si mesmos e por sua enorme capacidade para persuadir e influenciar pessoas. Expor as inclinações sexuais dos espionados era um de seus prazeres mais conspícuos. Homossexual enrustido, com fixação na mãe, um de seus alvos preferenciais eram os gays com ideias soi-disant subversivas, como James Baldwin (por sua militância na luta pelos direitos civis), Allen Ginsberg (por uma viagem a Cuba e por exaltar publicamente a maconha) e Truman Capote (por uma petição em favor de Cuba, ao lado de Sartre, Simone e dezenas de intelectuais do mundo inteiro).

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Cheios de contradições, fofocas infundadas, intrigas desqualificantes – e precariamente redigidos – os dossiês afinal revelam menos sobre os espionados do que sobre o modo de operar, pensar e escrever dos agentes. Os produzidos pelos nossos órgãos de segurança (Dops, DOI-Codi etc.) não eram diferentes. 

O economista e diplomata John Kenneth Galbraith, um dos primeiros a consultar sua ficha no FBI e descontrui-la num famoso artigo para a revista Esquire, espantou-se com os sucessivos erros de informação básica a seu respeito, a começar pela estatura (puseram-no um tanto abaixo dos seus 1m90 de altura). Norman Mailer, outro vigiado por apoiar Cuba, também se divertiu por escrito com as mancadas de seu dossiê. 

Ernest Hemingway, que durante a guerra monitorou, de Havana, o movimento de submarinos alemães no Caribe, caiu no radar de Hoover depois de comparar, numa entrevista, o FBI à Gestapo. Foi vigiado até o fim da vida e sabia disso. Os amigos o diziam paranoico. Era e não era. 

Susan Sontag ganhou seu prontuário ao visitar Hanói e abrir o verbo contra a Guerra no Vietnã. Aldous Huxley caiu em desgraça por “promover alucinógenos”. Em Ray Bradbury pespegaram a pecha de “derrotista” (pelo desfecho de Fahrenheit 451 e outros contos de ficção científica), “anticapitalista” e inimigo do Comitê de Atividades Antiamericanas (ou seja, um antimacarthista), confere, mas jamais conseguiram envolvê-lo diretamente com o comunismo.

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Embora tenha se voluntariado como informante do Bureau, a escritora Ayn Rand, anticomunista até a medula, acabou indexada por “advogar o ateísmo”. Explica-se: Hoover e seus cruzados antivermelhos também lutavam pela preservação dos valores religiosos e “da família”. 

Hannah Arendt, a mais proeminente filósofa política do seu tempo, caiu na rede em 1956, quando um agente em Los Angeles culpou-a por induzir sua filha, aluna de Arendt na Universidade de Berkeley, a mandar-se para a Europa. O próprio agente reconheceu-lhe a “mente brilhante”. Por sua notória postura antitotalitária, Arendt permaneceu pouco tempo na mira do Bureau.

Instalado no mesmo prédio que ainda se chama Hoover Building, o FBI, agora dotado dos mais sofisticados meios de espionagem eletrônica, emprega 10 vezes mais informantes do que tinha em 1974. A maioria se ocupa da comunidade muçulmana, mas o rastreamento de escritores e artistas pouco arrefeceu. O romancista William Vollmann e a cineasta Laura Poitras que o digam. 

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