Duas biografias e uma HQ resgatam a história de Rosa Luxemburgo

Pensadora marxista foi morta há cem anos em um dos eventos que acompanharam o nascimento da República de Weimar

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Por Marcelo Godoy
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Uma coronhada na cabeça. Desfalecida, Rosa Luxemburgo foi colocada em um carro por um soldado, antes que lhe disparassem um tiro no crânio. O corpo foi jogado de uma ponte – e só encontrado meses depois. O assassinato da pensadora marxista em 1919 foi um dos eventos dramáticos que acompanharam a derrubada da monarquia alemã dos Hohenzollern e o nascimento da República de Weimar há cem anos. Ele tornaria irremediável a divisão entre social-democratas e comunistas na década que antecedeu a ascensão do nazismo.

Barbara Sukowa foi Rosa Luxemburgo no cinema, em 1986, dirigida por Margarethe von Trotta Foto: Globo Vídeo

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No centenário de sua morte, a memória de Rosa Luxemburgo ainda é objeto de disputa. Essa polonesa de Zamosc, que deixou sua família judia para estudar em Zurique (Suíça), conquistou um lugar na história das ideias do século 20. Doutora em economia política, a vida e a obra da pensadora é o tema de três livros – duas biografias – lançados no Brasil. Em Rosa Luxemburgo, os Dilemas da Ação Revolucionária, a professora de filosofia Isabel Loureiro mostra que escrever sobre essa mulher é também mostrar a política, não como cálculo, mas como tragédia.

Rosa se deixou levar pelo destino com a firmeza de um Lutero, diante da Corte Imperial de Worms. O “hier stehe ich, ich kann nicht anders” (aqui estou, não posso agir de outro modo) de Rosa a fez apoiar uma rebelião em 1919, em Berlim, que sabia não ter futuro. Sem outra saída, se não buscar na ação a formação da consciência política, fez o que lhe pareceu um imperativo moral ditado pelo seu objetivo – o socialismo. A derrota seria um momento necessário à vitória.

Loureiro mostra em seu livro o percurso intelectual e político de Luxemburgo, cuja morte representou ainda o fim de qualquer possibilidade de o partido comunista alemão se opor ao atrelamento e à sujeição a Moscou. Crítica do terror bolchevique, Rosa não via o partido como substituto da consciência de uma classe. “A práxis stalinista confirmou de maneira sangrenta a crítica de Rosa Luxemburgo à teoria da organização (do partido) de Lenin”, conforme escreveu Jürgen Habermas em seu Teoria do Agir Comunicativo.

Essa Rosa libertária chamou a atenção de outros pensadores. O primeiro foi o húngaro Georg Lukács, cujos ensaios em História e Consciência de Classe serviram de inspiração para Loureiro desvelar o precário equilíbrio entre a teoria e prática em sua personagem. Ela procura mostrar como Rosa buscou desmascarar as ilusões a fim de estabelecer conexões que a levassem a perceber a totalidade da economia da sociedade de então. O estudo da personagem se transforma na sua relação concreta com a vida, a economia e a política, em uma síntese que exibe a consciência como um remédio contra o fatalismo das leis imutáveis e a ética imperativa abstrata kantiana.

Outros pensadores fora do marxismo também se debruçaram sobre essa ativista política. Em seu livro Homens em Tempos Sombrios, Hannah Arendt incluiu apenas uma mulher: Rosa. Social-democrata, ela rompera com a cúpula do SPD (a social-democracia alemã) em razão da capitulação do partido diante do esforço de guerra do Kaiser Guilherme 2.º, em 1914. Também se entusiasmaria com a Revolução Russa, em 1917, para, meses depois, lançar o anátema sobre o terror bolchevique, que transformava a necessidade em virtude. “Liberdade para os apoiadores do governo, de um único partido – por mais numerosos que sejam –, não é liberdade de forma alguma. A liberdade é sempre, exclusivamente, para os que pensam de forma diferente”, escreveu Rosa. Nada mal para alguém que dizia ter nascido para “cuidar de gansos”.

A revolucionária alemã foi assassinada por radicais da direita alistados em grupos paramilitares – os freikorps. Eles foram usados pelo ministro do interior social-democrata Gustav Noske para sufocar em janeiro de 1919 a rebelião em Berlim contra o governo liderado pelo social-democrata Friedrich Ebert. Instigado pelo Partido Social Democrata Independente (USDP, na sigla em alemão) e pela Liga Spartakus de Rosa Luxemburgo, o levante fracassou. Ele é parte essencial dos três livros sobre Rosa.

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A segunda obra, a biografia escrita por Paul Frölich, é o mais antigo dos três textos. Rosa Luxemburgo, Pensamento e Ação é um livro em que o leitor não pode perder de vista o contexto em que foi escrito. Frölich militou no SDP e depois no KPD, o partido comunista alemão. Quando lançou a obra, em agosto de 1939, Rosa era uma herege para o movimento comunista, desde que fora posta no índex por Stalin, em 1931.

Era ainda o tempo em que o nazismo destruíra o monumento à Rosa em Berlim, apagando a memória da República de Weimar, que os social-democratas fundaram em 9 de novembro de 1918. Hitler preparava a guerra enquanto Frölich vivia exilado em Paris, depois de ser expulso, em 1928, do Partido Comunista, que ajudara a criar. Diante de um mundo em ruínas, ele queria retirar o pó das infâmias com as quais os fascistas e stalinistas cobriam a memória da Rosa judia e revolucionária. A defesa da companheira, porém, tornou-se em vários trechos um relato hagiográfico, o que compromete o texto.

A última obra sobre Rosa é aquela com a maior chance de agradar a um grande público. Trata-se da biografia em quadrinhos, Rosa Vermelha, de Kate Evans. A pesquisa reconstrói a história da personagem de forma ousada e divertida, distante da santa comunista quase assexuada de Frölich. Kate Evans mostra uma Rosa de carne e osso, da reforma e revolução, de sexo e humor, de ação e pensamento, de sonho e amargor e de socialismo e barbárie. Ilustrada no traço sensível da autora, está a imanência e a práxis – a filosofia como afirmação da historicidade da própria filosofia –, que moveu Rosa.

Ali a Rosa das cartas do cárcere aparece ao escrever sobre os pássaros que lhe visitavam no pátio da prisão em que o governo alemão a encerrara por sua oposição à 1.ª Guerra – ela passou na cadeia a maior parte do conflito. Kate Evans se despede da personagem sem a escuridão crua da cena final do filme da diretora Margarethe von Trotta. Sua Rosa submerge inerte, atirada do alto da ponte pelos seus assassinos enquanto, olho nos olhos do leitor, diz: “Na escuridão, sorrio para a vida, como se estivesse de posse de um segredo mágico que desmente tudo o que é mau e triste e o transforma em pura luz e felicidade. E, quando procuro dentro de mim mesma alguma razão para essa alegria, nada encontro, o que me leva novamente a sorrir – e rir de mim mesma. Acredito que o segredo não é outra coisa senão a própria vida.”

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