E a nudez morreu de overdose

Menos pornográfica que um jogo de futebol, ela não transgride mais nada. Ficou tão sem gosto que nem de mau gosto consegue ser

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Por Eugênio Bucci
Atualização:

Naquele tempo, um telefone quando tocava fazia triiim. Era muito simples distinguir. Hoje, os mobiles soam das maneiras mais impertinentes: uns apitam como grilos cibernéticos, outros gritam como perus sampleados, há os que latem schnauzers remasterizados. Ficou difícil aprender a diferença entre uma chamada telefônica e a campainha da porta ou o alarme do forno. Naquele tempo, telefone era telefone, campainha era campainha e forno era forno. As separações entre uma coisa e outra eram mais esquemáticas. Esquerda era esquerda; direita era direita. Homem era homem; mulher era mulher. Depois, o mundo se complicou e as categorias que eram estanques foram se fundindo e confundindo num aguaceiro multiculturalista, transgenérico, supertecnológico. Uns dão a isso o nome de modernidade líquida. Se o nome fosse liquidificador modernáutico não faria a menor diferença.

Marilyn Monroe na capa da primeira edição, de 1953 Foto: AP

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Até o início dos anos 90, na indústria cultural do Brasil, “os tais caquinhos do velho mundo” ainda resistiam. As sexualidades oficiais cabiam em suas caixinhas organizadas, ou quase. Não existia internet e os telefones ainda faziam triiim. Houve uma noite, já bem tarde, o telefone fez triiiim na redação da Playboy. Eu estava lá, sozinho, entre mesas de metal com tampo de fórmica verde, protocomputadores que pareciam contêineres fumegantes e máquinas de escrever que pareciam caixas de pesca. Triiiim! Empunhei o gancho e cumpri meu dever:

- Alô?

- Boa noite. É da revista Playboy?

A voz feminina, artificialmente sussurrante, simulava uma sensualidade improvável.

- Sim - eu respondi. - É da redação da Playboy.

- Sabe, é que eu gostaria de “pousar” para a Playboy.

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Isso mesmo. Ela disse “pousar”. Eu juro. 

Certas palavras traumatizam o cidadão - e, naquela noite, o verbo “pousar” atordoou meu ouvido direito. Ao me recobrar, tive o ímpeto polido de responder com um elogio - “Puxa vida, a senhora deve ser um avião” -, mas me acovardei. Orientei a intrépida candidata a ligar no dia seguinte e procurar a Ariane Carneiro, editora responsável pelas senhoritas interessadas em posar, sem u. Eu trabalhava exclusivamente na “parte cultural”, como nos lembrava, diariamente, nosso redator-chefe, Humberto Werneck. Imbuído das minhas atribuições estritas, eu me despedi da moça, que pronunciou um “tchau” aspirado, e voltei às minhas culturais ocupações: decidir entre um “porém” e um “contudo” na edição de uma longa reportagem literariamente diferenciada, digamos assim. Nós, na parte cultural, acreditávamos que publicávamos os melhores textos da imprensa brasileira, e os mais compridos também. A parte das fotografias naturalistas não ficava sob a nossa jurisdição. Era outro departamento.

Mas como era bom o outro departamento. Era uma delícia inebriante habitar aquela região fronteiriça do jornalismo sério, literário, investigativo, etc. e etc., bem na linha de vizinhança com os domínios da Ariane. Ocasionalmente, eu passeava do lado de lá. Uma vez, pensando apenas no sumo bem da imprensa pátria, fiz uma “sugestão de pauta” para a parte que não era a cultural. Minha sugestão era fazer um ensaio de nu artístico encimado por um título erudito: “Um país se faz com mulheres e livros”. O lado de lá aprovou minha homenagem semierótica a Monteiro Lobato e produziu fotos inesquecíveis: uma formosa loira espreguiçava em lânguidos ângulos sobre um assoalho forrado de clássicos da literatura nacional. Como ghost writer das imagens, eu vibrei. A dama de cachos dourados foi para mim uma vitória intelectual. 

Era de mau gosto? Há controvérsias. Pelo sim, pelo não, os leitores talvez não tenham entendido direito. Para eles, um país deveria ser feito com mais mulheres e menos livros. Ademais, os leitores não liam muito. Gostavam mais das figuras. “O leitor não o é”, alertava Humberto Werneck. E eram milhões, multidões pós-baudelairianas de leitores ávidos por figuras. A Playboy brasileira tinha se tornado um exímia fabricante daquele tipo de figura, a mais festejada entre todas as edições internacionais da revista americana, detentora da fórmula vitoriosa. 

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Naquele tempo, as mulheres peladas eram uma instituição da indústria editorial globalizada. Eram as coelhinhas dos ovos de ouro. Diz a lenda que Hugh Hefner descobriu o segredo do sucesso trabalhando na cozinha de seu apartamento, nos anos 50. Hefner queria uma revista que, além de publicar escritores de primeira (como a Esquire, onde ele tinha sido copydesk), mostrasse todas as curvas íntimas da vizinha que o leitor cobiçava em silêncio. Coisa de gênio. Playboy virou um fenômeno, com vizinhas anônimas e estrelas tão consagradas quanto inalcançáveis. 

Certa vez, estive numa “convenção” da Playboy, em Chicago. Lá conheci Christie Hefner, filha do pai fundador. Notei que ela tinha um linguajar curioso. Para reforçar o espírito de equipe da nossa turma transnacional, falava em “família Playboy”. Achei que algo ali não conjuminava. Hugh tinha um espírito transgressivo, ao menos no campo dos costumes, embora fosse machista, consumista e narcisista. Christie, por sua vez, era politicamente correta e falava em “família” dentro de um império de fotos eróticas. Era desconcertante. O arrojo priápico da origem se deixara domesticar. As fantasias primitivas envelheciam tristemente, apesar das modelos sempre novinhas em folhas de boa gramatura.

Depois disso eu me afastei da revista para cuidar de outras partes culturais em outras paragens. Nunca mais frequentei as cercanias fotográficas da dinastia Hefner. Até que, nesta semana, a Playboy anunciou o fim dos seus ensaios de nus femininos e senti um súbito vazio no peito. Tive saudade, quase filial, daquelas frondosas mulheres peladas. Entendi que elas estão mortas. 

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É triste, mas já era tempo. A nudez segundo Hugh Hefner, que já era brega, exauriu-se. Antes, era dessublimadora. Agora, é irrelevante. Perdeu a mísera parte que tinha com o erotismo. É menos pornográfica do que um jogo de futebol. Não transgride mais nada, nem mesmo faz cócegas. Ficou tão sem gosto que nem de mau gosto consegue ser. Morreu de overdose. 

Ao demitir seus nus, a Playboy encarou sua verdade final. Finalmente ficou nua, completamente nua, em nu frontal. Despiu-se da nudez alheia de que lhe servia de roupa - e por baixo da velha roupa não havia mais nada para ver. A bacante do capitalismo disse adeus. Eu também digo. Adeus, mulheres peladas. Adeus, passado. Adeus bons tempos em que os telefones eram telefones, os homens eram homens e as mulheres... e as mulheres eram um avião.

EUGÊNIO BUCCI É JORNALISTA, PROFESSOR DA ECA-USP, ESCREVE QUINZENALMENTE NA PÁGINA 2 DO ESTADO E FOI EDITOR-SÊNIOR DA REVISTA PLAYBOY

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