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E isso é só o começo...

Resta saber até quando os governantes farão vista grossa à corrupção que gera violência

Por Cristina Neme
Atualização:

A recente ação policial no Complexo do Alemão expõe mais uma vez a realidade violenta em que vivem os moradores das periferias e favelas das grandes cidades brasileiras. As autoridades justificam o elevado número de mortos e feridos como resultado inevitável da ação policial contra o tráfico. O governo precisa agir, e a vitimização da população, ainda que indesejável, seria um efeito colateral. Verifica-se um banho de sangue em que os corpos (de criminosos, suspeitos, adolescentes, cidadãos?), em vez de preservados no local, são expostos e transportados precariamente por moradores e policiais. Qual é, afinal, o impacto das prisões realizadas e da apreensão de armas e drogas, frente ao alto custo humano gerado pelas incursões policiais? O que elas representam diante do milionário mercado de drogas que emprega mão-de-obra de jovens pobres e abriga interesses de figuras que não freqüentam o circuito dos morros? Sabe-se que os delinqüentes mortos ou presos logo serão substituídos, de forma que a economia ilegal se recompõe e continua operando. Sabe-se também que o tráfico de drogas e de armas estende seus tentáculos em diversas direções, envolvendo não só a população pobre, mas agentes do Estado. Face à dificuldade de desatar esse nó, os governos tendem a optar por medidas simplistas no campo da segurança, que não raro se revelam desastrosas, abrindo mão de planejar políticas de segurança democráticas voltadas para a articulação entre prevenção, inserção social e repressão legítima. Reproduzem assim uma falácia que se afirmou no contexto da democratização brasileira: frente ao crescimento da criminalidade violenta nos anos 80, a eficiência policial foi associada ao uso da força física, de forma que o recurso (ilegítimo) à violência foi tolerado, quando não abertamente incentivado, como meio de contenção da criminalidade. Embora não tenha apresentado efeitos na redução da criminalidade, tal "política" permanece como carta na manga dos governantes, que a usam quando necessitam responder às demandas sociais por segurança, seja durante as eleições, seja em ocasiões especiais em que a atenção à segurança pública torna-se um imperativo político. As vítimas das operações policiais são invariavelmente tachadas de criminosas; os confrontos são apresentados como inevitáveis, embora o governo se recuse a dar transparência à apuração dos fatos; e o cenário de guerra se repete de tempos em tempos, lembrando quão frágil é uma democracia que mantém grande parte da população excluída do bem-estar social e do Estado de Direito. A esses cidadãos (cidadãos?) se reserva a mão repressiva e violenta de um Estado fraco, incapaz de gerir democraticamente as instituições fundamentais ao desenvolvimento da civilidade e da sociabilidade. Que paz tais incursões nas comunidades podem produzir? É evidente que não resultam em pacificação, mas agravam a segregação social por meio da aplicação de violência em nome do Estado. Nas favelas e periferias, a relação entre polícia e população é marcada por desconfiança e rejeição em razão de práticas de abuso. Sem acesso ao serviço cotidiano de policiamento preventivo, os moradores vivem sob o fogo cruzado da polícia e dos criminosos locais. Experiências como o policiamento comunitário merecem ser destacadas, mas seu alcance permanece limitado, já que não se universalizaram como política pública de segurança. Configura-se um padrão que combina escassez de policiamento democrático, geralmente concentrado nas áreas mais ricas das cidades, com intervenções policiais pontuais de caráter repressivo ou violento - de forma que a presença das forças policiais passa a representar antes risco do que garantia. É evidente que a forte insegurança das comunidades periféricas não pode ser enfrentada como uma questão meramente policial, visto que é sobre uma complexa teia de problemas sociais que a violência se desenvolve. Mas o papel da instituição policial, e do sistema de justiça criminal, também é fundamental para que essas áreas sejam incluídas no Estado de Direito. A falta de garantia às liberdades individuais básicas gera um prejuízo social: diante do risco de balas perdidas durante os conflitos, as escolas se fecham e crianças e adolescentes permanecem sem acesso à educação. Por sua vez, os gestores da saúde pública não cessam de indicar os custos humanos e econômicos da violência, evidenciados no cotidiano dos hospitais. Mas nossos governantes raramente formulam iniciativas consistentes para enfrentar as causas da criminalidade organizada e mal reconhecem que o controle legítimo da ordem é uma premissa para enfrentar o problema da insegurança em sua complexidade, avançando na direção de políticas de prevenção e de repressão democráticas. Preferem manter-se alheios ao funcionamento das redes de corrupção que envolvem diversos setores do poder público e que são potentes geradoras de violência. Resta saber até quando o custo político desse alheamento será menor do que o custo político do enfrentamento do problema. O custo social nós já conhecemos.

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