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'É melhor contar tudo antes'

Para o consultor americano David Brin, políticos transparentes, que abrem erros passados, são menos sujeitos a chantagem

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Ao tomar posse em Nova York, o governador David Patterson já saiu dizendo: "Tive muitas amantes". Ao diário New York Daily News, ofereceu detalhes - "uma delas era funcionária pública estadual". Sua mulher, Michelle Patterson, não se fez de rogada: também teve os seus. Antes mesmo de iniciar sua campanha para a presidência, Barack Obama deixou claro que cheirou cocaína, fumou maconha e, sim, tragou. Já que a informação pode vazar, melhor abrir tudo, sugere a atual política americana. "Não acho que toda informação deva ser pública", diz o astrônomo David Brin, consultor da Nasa e autor de The Transparent Society (A Sociedade Transparente, sem tradução em português). "Mas na maioria das vezes em que governos optam por tornar algo secreto, estão dizendo na verdade que não se pode confiar na reação de uma sociedade informada." Políticos transparentes não são sujeitos a chantagem, diz. Durante a última semana, Brasília lidou com um debate do tipo. No bate-boca sobre dossiês e contas, a ex-primeira-dama Ruth Cardoso afirmou que seus gastos com cartão corporativo e os do marido podem ser abertos sem problemas. Mas a opção pela transparência total não é tão simples e não trata apenas de governos. Para Brin, novas tecnologias ampliam as possibilidade de acesso a informação sobre tudo e todos. E impõem pressões sobre a privacidade que não apenas políticos sentem. O mundo está em transformação e teremos que fazer uma escolha. A opção se dá entre impor limites à informação que circula e a transparência total. A seguir, trechos de sua entrevista para o caderno Aliás. É justo que um governador caia porque sua vida pessoal foi tornada pública? Vivi em Paris por dois anos. Os franceses são muito mais espertos que os americanos na lida com a vida pessoal dos políticos. Ninguém liga para o fato de que alguns tenham amantes. O povo americano terá de amadurecer. Enquanto isso não acontece, um político que mantenha em segredo sua vida extraconjugal está sujeito a chantagem. No caso do governador Elliot Spitzer, de Nova York, ele não caiu porque sua vida foi divulgada. Caiu porque fazia campanha contra redes de prostituição. Sua capacidade de governar se perdeu pela hipocrisia. Exemplo melhor é o de Bill Clinton. Durante sua crise conjugal, Hillary Clinton parecia dizer com seus olhos "me deixem cuidar disso em casa". As mulheres dos EUA compreenderam isso. Segundo as pesquisas de opinião, não eram elas que estavam contra o presidente. Eram homens. Enfim, toda informação deve ser pública? Não. Há senhas para o disparo de armas nucleares que não faço a mínima questão de conhecer. Só que na maioria das vezes em que governos optam por tornar uma informação secreta eles estão fazendo duas apostas. Acham que a sociedade não tem condições de lidar com certos dados e que alguns profissionais a serviço do Estado é que sabem o que fazer. No entanto, todos os anos algum desses profissionais esquece um laptop com segredos em algum metrô. Quando algo assim acontece, cria-se mais burocracia, comissões de estudo, sistemas extremamente elaborados de proteção de informação e qual o resultado? Alguém perderá um laptop novamente. Nossa civilização é mais madura do que isso. Ela consegue lidar com a maioria dos dados que o governo, ainda que de boa-fé, quer ocultar. Alguns desses dados tratam da vida pessoal dos cidadãos. Sim, mas veja: as novas tecnologias de comunicação tornam tão fácil a aquisição e distribuição de dados que teremos de tomar uma decisão. Veja por exemplo as câmeras, cada vez mais baratas e miniaturizadas. Leis de controle podem proibir a mim ou a você de ter acesso a elas. Mas o governo terá acesso. Gente muito rica, também. E criminosos. Precisaremos fazer uma opção entre liberdade de acesso à informação e privacidade. O que o sr. escolheria? Acesso à informação. Se houver abuso no que tange à privacidade, podemos corrigir. O que o Iluminismo fez foi fazer com que as elites percebessem que teriam de ser mais transparentes. Passamos a poder ver o que fazem. O mundo que imagino é um no qual homens livres desejarão alguma privacidade. A sociedade saberá fazer as escolhas certas se tiver acesso à informação. Mas não é essa mesma sociedade que estimula a cultura de celebridades onde não há privacidade? Nós temos uma escala de expectativa de privacidade que varia. Aqueles que procuram os holofotes não podem contar com o mesmo grau de privacidade que os outros têm. Mas e se aplicássemos um sistema de transparência recíproca? As estrelas de cinema nos EUA poderiam se juntar para produzir uma revista dedicada aos principais paparazzi. Elas têm dinheiro para isso. Poderiam pagar fotógrafos para segui-los como eles próprios fazem. Os paparazzi receberiam o mesmo tratamento de celebridades numa publicação distribuída nacionalmente. O que acontece é que, perante um problema, as pessoas buscam soluções que envolvam restringir, aumentar o controle sobre a informação. Numa sociedade transparente, as soluções seguem outro princípio. Combate-se o abuso jogando mais luz sobre os fatos. Nesse caso, é certo que os atores de cinema ganhariam mais espaço livre. O sr. considera que vivemos um momento de crise no que tange a transparência e privacidade? Sim. Mas, pense, logo após surgir a imprensa, as elites reagiram cerceando o acesso. Essas novas tecnologias, pensaram, vão fazer com que o povo perca o rumo. As elites sempre desejam controlar o povo. Mas o resultado de mais informação tem sido, sempre, mais liberdade. Logo que uma nova tecnologia surge, pode ocorrer um período confuso com abusos e distorções, conforme todo mundo vá se acostumando com a nova realidade. Após a imprensa veio a Guerra dos Trinta Anos. O primeiro resultado do acesso ao rádio, na Europa, foi o surgimento de líderes demagogos que implantaram o fascismo. Mas, nos períodos seguintes, uma população mais bem informada desenvolveu sociedades mais livres, mais distantes do feudalismo, mais democráticas. Agora, vivemos um novo período de transição. A mesma confusão está no ar e é bom voltar à história. Jamais nos arrependemos quando tomamos a decisão de ampliar o acesso à informação em lugar de controlar. Faz 300 anos desde o Iluminismo que apostamos na liberdade de acesso a informação, enquanto se ampliam as possibilidades de distribuí-la. Quais são os três pilares do Iluminismo? Mercados, ciência e democracia. Dependem de uma população amplamente informada. Como decidir, então, o que realmente deva ser segredo? Invertendo a questão. O Estado deve prestar contas à população e convencê-la de que informações de uma dada natureza não devem ser públicas. Por que a população não confia no atual governo dos EUA? Não é porque suas políticas deram errado. É porque jamais foi transparente. Tudo é feito às escondidas. Temos um medo tão desesperador de 20 imbecis que se jogaram contra o World Trade Center que criamos um nível de segredo muito maior que o que havia durante a Guerra Fria, quando enfrentávamos um inimigo muito mais poderoso. Faz sentido?

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