E não ficou estreito

Mestre da confeitaria mais antiga do Rio, João Alves de Figueiredo só queria ser rei na Paraíba

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Por Clarissa Thomé | RIO
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Se tem uma coisa de que o menino João gostava era de rapadura. Comia todos os dias, para ter “energia” para a lida nas terras da família, descendente dos índios cariris, em Tacima, no agreste paraibano, a 153 quilômetros de João Pessoa. Também gostava das frutas em calda, mas era produto caro. Quando ia à feira, ficava de olho numas roscas cobertas de coco. Era o doce mais requintado que conhecia.

O monarca: 'Sem essa de gourmet. O freguês gosta é de comer os doces simples da infância dele' Foto: FABIO MOTTA/ESTADÃO

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Foi por isso que, aos 19 anos, se encantou com a vitrine da Casa Cavé, a mais antiga confeitaria do Rio, aberta em 1860. Achou que seria “rei na Paraíba” se soubesse fazer doces como os que via. Quase meio século mais tarde, João Alves de Figueiredo, de 66 anos, é o mestre confeiteiro responsável pelos segredos de receitas que adoçaram o paladar de fregueses como d. Pedro II, Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade. Figueiredo não virou rei na Paraíba, mas ver os doces que ele prepara com tanto esmero serem servidos no prédio histórico, na Rua Sete de Setembro, 133, para onde a confeitaria acaba de voltar, depois de 15 anos em outro endereço, tem lá sua nobreza. 

Para chegar à Cavé a estrada foi longa. Primeiro precisou sair da pequenina Tacima, de 246 quilômetros quadrados. “Quando nasci, ainda alcancei mata. Ali não tinha nada. Era conhecida como a cidade dos tapuias (índios que não falam tupi). A gente atravessava o Rio Curimataú pra arranjar namorada, e não dizia de onde era. Não tinha nem escola, nem professor. De vez em quando aparecia alguém que sabia ler e com muito custo ensinava o ABCD”, ele relembra. 

A primeira vez que deixou Tacima foi atropelado por uma bicicleta. Estava em João Pessoa e não sabia que o verde no semáforo indicava que os veículos podiam avançar. Guardou a lição. Provocou uma revolução em casa quando avisou que viajaria para o Rio de Janeiro. Queria aprender, explicou. Aprender o quê?! “Tudo. A ler, por exemplo. Ninguém queria deixar, porque não tinha conhecido nosso no Rio.” Viajou com dinheiro para ficar um mês e voltar, se nada desse certo.

Deixou os pais e sete irmãos num dia 13 (de março de 1968). Sentou na poltrona 13 (era a única vaga). Viajou 13 horas. “Aí ficou estreito. Tinha tudo para dar azar.” Ao contar sua história, Figueiredo repete muitas vezes que “ficou estreito”, como quem diz que a situação ficou difícil, esquisita. Mas ele fez amizades no trajeto e uma família o convidou para passar a primeira noite na favela Baixa do Sapateiro, no Complexo da Maré. 

Nunca ficou desempregado. Trabalhou sete dias num bar perto da Rodoviária Novo Rio. Foi demitido porque invertia tudo: colocava leite no café carioquinha, e água no pingado. Foi tintureiro no restaurante Tarosa, em Copacabana. Tinha que lavar e passar a roupa dos garçons. “Homem não passava roupa em Tacima. Quem fazia isso era mariquinha. Aprendi tudo aqui.” Pediu uma chance ao espanhol dono do Tarosa para passar a garçom. “Se você não fala português vai saber espanhol?”, o patrão quis saber. “É que eu falava tudo errado e lá dava muito turista. Mas insisti”. Aprendeu a falar o prato do dia. E era a única sugestão que dava: “Pollo con papas fritas y ensaladas”. 

Transferiu-se para uma churrascaria no Largo do Machado, na zona sul. E foi num dia de folga, caminhando pelo Centro, que descobriu os doces da Cavé. Pastel de Belém, bolo de reis, casadinhos, folhados, biscoito de araruta. Descobriu o que queria fazer na vida. Pediu emprego. Sem vagas. E por 12 anos repetiu a pergunta aos garçons até conseguir o posto. Era 1980.

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Mas então ficou estreito. Era muita louça fina, doces delicados, pratos que Figueiredo não conhecia. Na churrascaria, o servir era “mais bruto”. Teve de se acostumar à nova rotina. E aos novos clientes e seus gostos. Carlos Drummond de Andrade pedia salada de frutas com groselha. Yoná Magalhães gostava de milk shake de abacaxi. Mas isso foi antes do tempo das dietas. 

Figueiredo ainda queria aprender os mistérios dos doces. No intervalo do almoço, trocava o descanso para ir até a “fábrica” - na cozinha são feitos os salgados; na fábrica, os doces. E se oferecia para ajudar no que fosse preciso. Não era bem-vindo. Até que o mestre confeiteiro José Maria, cansado das investidas do garçom, mandou que lavasse as louças. Todos os dias aparecia para lavar panelas e ouvir receitas. De vez em quando, parava o serviço e corria ao banheiro para fazer anotações.

Tentava repetir as receitas em casa, para angústia da mulher Adilza, preocupada com o orçamento apertado. “Ora, um curso no exterior sai muito mais caro”, argumentava. A primeira iguaria que saiu do forno dos Figueiredos foi o biscoito de araruta. Levou para José Maria provar e o mestre confeiteiro pediu alterações. Até ele acertar o ponto. 

Um dia, tomou coragem e pediu permissão para fazer o pastel de Belém. É o carro chefe da Cavé. Por dia, saem mil desses. É feito de forma que o sabor do ovo, que incomoda tanta gente, não saia realçado. A massa é crocante. O recheio cremoso no ponto certo - não pode ficar duro, nem escorrer à primeira mordida. O mestre não acreditou: “Se você conseguir, eu tiro o meu chapéu e ponho na sua cabeça”. Figueiredo acertou de primeira. “Aquele chapéu na minha cabeça era como se eu tivesse sido coroado.” 

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José Maria adoeceu. Numa visita do aprendiz, suspirou: “E ainda tenho tanto para te ensinar”. Não houve tempo. Figueiredo teve de descobrir por conta própria. Mas vieram as mudanças. Os antigos sócios venderam a Cavé para quatro empresários, de famílias portuguesas. O negócio cresceu, mas o prédio histórico não permitia ampliação da cozinha. Foi preciso deixar o salão frequentado por Olavo Bilac e Tarsila do Amaral. “Ficou estreito. Era como se a gente tivesse perdido um parente. Ninguém sabia se ia continuar no emprego.” Para completar, uma confeitaria “mais moderna”, de 1964, abriu filial no prédio da antiga Cavé. Como a fachada era tombada e não podia ser alterada, muita gente trocou uma pela outra. No ano passado, o aluguel caro fez encerrar o contrato da “novata”. As portas se abriram para o retorno da Cavé. 

Certo dia, Figueiredo reuniu em livro receitas portuguesas que recortou de jornais da terrinha e presenteou um dos sócios da confeitaria. Ganhou em troca uma viagem a Portugal. Fez passeio gastronômico. “Só achei pastel da nata tão bom quanto o meu em Belém”, diz. Aprendeu novas técnicas - por exemplo, deixou de fazer toda a fornada de pastéis pela manhã e passou a servi-los quentinhos ao longo do dia. “Tá bom, né? Para quem saiu de uma aldeia analfabeto, aprendi uma profissão, já fui a Portugal duas vezes e ainda conheci outros quatro países: França, Inglaterra, Itália e Cabo Verde.” Sente orgulho de ter visto as duas filhas terminarem o ensino médio e o filho cursar duas faculdades: biologia e nutrição. 

Na fábrica da Cavé, comanda cinco homens e duas mulheres. Mas não gosta que se fale dessa maneira. “Somos uma equipe. Precisamos uns dos outros.” Sai de casa às 4h, em São Gonçalo, no Grande Rio, para começar o trabalho às 6h. As primeiras fornadas saem às 8h30. Diariamente, 40 quilos de farinha, 50 de açúcar, 6 de manteira, 45 de massa folhada e 60 dúzias de ovos viram bolos, tortas, biscoitos e cremes. 

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Figueiredo prova todos. Come doce o dia inteiro e mantém os 78 quilos distribuídos por 1,65 metro. “O segredo é não beber água depois. É a água que engorda”, garante. Reconhece que de vez em quando o ponteiro da balança dispara e aí, em vez de estreito, fica largo. “Então dou uma parada.” 

Os colegas começaram como Figueiredo, aprendizes. “E se chegaram sabidos tiveram que ficar burros e aprender de novo. Aqui todas as receitas têm segredo. Não podemos ter rotatividade.” O mestre confeiteiro diz que está preparando o sucessor. Já teve chance de virar “rei dos doces” na Paraíba, mas declinou do convite. “Cada patrão tem um jeito. Os daqui eu já conheço”.

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Mas quer ver Figueiredo arretado é falar da tal “gourmetização”. “O cachorro-quente bom é o tradicional. Não é o todo enfeitado. O bom é o simples. Você vê o pastel de nata: a receita não muda”, afirma. Na Cavé, ainda são servidas aquelas tortas com frutas por cima. “O freguês quer comer a torta da infância dele, que é feita do mesmo jeito há cem anos. A gente já botou essas tortas modernas aí, enfeitadas. Não saiu”. 

Se na Cavé Figueiredo domina a fábrica, em casa a história é outra. A capixaba Adilza, com quem é casado há 44 anos, é quem manda nas panelas. Moquecas, peixe à escabeche e frutos do mar são as especialidades dela. Para não dar briga com a mulher, Figueiredo fez um “puxadinho” - cada um tem sua própria cozinha e se comunicam por uma janelinha. “É que às vezes eu esqueço o sal”, brinca. 

Adilza já foi conhecida como a “rainha” do panetone. Figueiredo cristalizava em casa as frutas e a mulher fazia a massa. Ela vendia cem por dia. A artrose interrompeu a atividade. Às vezes ele comenta que quer testar uma receita nova. Quando vê, Adilza apresenta o doce pronto. 

Se precisar, Figueiredo até faz um salgado: coxinha, rissoles, bolinhos de bacalhau. Mas não gosta. “Eu sou do açúcar.”

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