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E Pinpoo foi sem nunca ter ido

O bode é tanto com a perda de nossas malas pelas companhias aéreas que extravio de cachorro passou do limite: é dose pra leão

Por Christian Carvalho da Cruz
Atualização:

O céu não tinha uma nuvem e o calorão do dia já se insinuava na quinta-feira de manhã, em Porto Alegre, quando o governador gaúcho Tarso Genro chegou ao Batalhão de Aviação da Brigada Militar para tomar o helicóptero oficial que o levaria a um evento do MST, no interior. Embrulhado por três guarda-costas de ternos e óculos pretos, Tarso saltou de seu Vectra prateado e, sem bons-dias, protocolos ou demais delongas, foi logo querendo saber: “Cadê o sargento do cachorro?” Paulo Roberto Ribas, 53 anos de idade e 30 de polícia militar (que no Rio Grande eles chamam de Brigada), era o tal – o sargento do cachorro. Na noite anterior ele tinha capturado o brasileiro mais badalado da semana, trending topic no Twitter mundial: o cãozinho Pinpoo, extraviado duas semanas antes ao ser despachado como bagagem do aeroporto local, o Salgado Filho (onde também fica o Batalhão de Aviação), para Vitória. A explicação da Gol, responsável pelo transporte, é que o cachorro fugiu no trajeto entre o terminal de cargas e a aeronave, apesar de estar dentro de uma caixa apropriada e lacrada. Tarso, cachorreiro de quatro costados, dono do labrador amarelo Paco, seguia o caso com interesse. E ele acabara de ler no alto da primeira página da Zero Hora, que destacou seu mais perdigueiro repórter de polícia para cobrir o acontecimento: “O reencontro do cão Pinpoo e sua dona”. Tarso queria, pois, falar com o policial responsável pela ação.

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O Ribas gelou. No momento em que um colega esbaforido veio lhe comunicar que “o governador esta aí e quer falar com você” ele sentiu um aperto em determinada parte do corpo. “Bah, me lasquei”, gemeu pra ele mesmo. Vislumbrou uma exoneração, ou no mínimo uma prisão administrativa, por ter usado como armadilha de vira-lata perdido a sala vip do chefe de governo estadual. Não que fosse um recinto, assim, vip no último. Por ali há dois sofás de couro, piso frio, uma prateleira com duas garrafas térmicas (uma de café e outra de água quente pro mate) e alguns biscoitinhos. De very important, só a plaquinha "governador" pendurada na porta de um dos dois banheiros. “Eu queria cumprimentar o policial por seu gesto bonito”, Tarso me contaria mais tarde, ao descer do helicóptero, gravata frouxa e camisa empapada de suor. "Ele mostrou sensibilidade, trouxe a alegria de volta a uma cidadã, foi um bom exemplo para a comunidade."

Àquela altura, com aquela parte do corpo mais relaxada, o Ribas estrelava um telejornal local. Os colegas de quartel vibravam quando seu rosto pequeno e vincado enchia a televisãozinha do refeitório do batalhão. "Notícias importantes do dia: Japão, Líbia e o Ribas! Dá-lhe, sargento! Gaúcho bom!" E o Ribas contava pela trocentésima vez como "logrou êxito" na captura do Pinpoo: fez uma trilha de ossos e pedaços de galeto (sobra do churrasco da hora do almoço) ligando o matagal próximo à sala vip do governador. Quando o elemento peludo adentrou o sítio dos acontecimentos "e se atracou com o pote de comida", vupt!, o Ribas fechou a porta antes que ele pudesse se evadir. Estava feito.

O policial observava o fujão havia quatro dias. Buscou primeiro atraí-lo com ração. Nada. Presenciou homens da Infraero tentando jogar uma rede sobre ele, que, assustado, corria ao ver o clarão do giroflex da caminhonete amarela. E também soube das armadilhas com isca de salsicha que a administradora do aeroporto armou nos arredores. Nada funcionou, a não ser a paciência buldoguiana do Ribas. Ao ser capturado, Pinpoo estava a um quilômetro e meio do terminal da Gol de onde fora despachado 14 dias antes, ao custo de R$ 684 (fora os R$ 132 da caixa de transporte). "Fiquei muito comovido com a história da dona procurando seu cãozinho querido e senti que era meu dever ajudar", contou o Ribas, que chorou feito criança quando, a bordo de seu Opalão 87, foi entregar Pinpoo para a proprietária, a aposentada Nair Flores.

Pensando em algum desastre natural, uma criança em apuros, um feroz assalto a banco, pergunto qual outro caso o comoveu tanto nesses 30 anos de farda, e o Ribas não pestaneja para responder: "Foi quando o Pitico, meu poodlezinho, comeu uma coisa estranha e o veterinário disse que não tinha o que fazer, que devíamos deixá-lo quieto num quarto escuro para... para morrer em paz, o senhor sabe. Eu e minha mulher colocamos o Pitico em nosso quarto e fomos dormir na sala. Choramos a noite inteira. Mas no dia seguinte ele acordou bom, dá pra acreditar?! Coisa de Deus mesmo, tchê..."

Mas o sargento não está sozinho na saga de Pinpoo, o cão paroxítono. Ah, sim, se diz Pímpo, jamais Pimpô, muito menos Pimpú, como a similaridade com shampoo sugere. "É Pinpoo com 'n' no meio e dois 'ós' no final", a Nair repetia pacientemente aos jornalistas do Brasil todo que telefonavam querendo notícias do sumiço. E completava: “Pin porque o pai dele, Coco, é um pinscher. E poo porque a mãe, Bianca, é uma poodle”. Essa questão de parentesco é uma confusão danada na vida de Pinpoo e Nair. Ela se diz mãe dele. Mas Coco e Bianca pertencem à filha racional dela, Claudia, que vive em Guarapari (ES). E se a Claudia considera Coco e Bianca filhos seus, logo Pinpoo deveria ser neto da Nair. Ou bisneto, se levarmos em conta que a filha gente da Claudia, netinha da Nair, é a verdadeira dona de Coco e Bianca. Entendeu? Deixa pra lá... O importante é a palavra do veterinário Luciano Bonetti, que cuidou de Pinpoo depois que ele foi encontrado, meio magro e com alguns arranhões: “Eu ponho na ficha o que o dono do animal alega. Se me dizem que é mestiço de pinscher com poodle, é o que eu escrevo. Poodle pode até ser, mas de pinscher não vi sinal no cachorrinho da dona Nair”. Para o doutor, a comoção nacional tem uma explicação: “A gente já sente tanta raiva quando as empresas aéreas perdem nossa mala que, quando o extravio é de cachorro, ninguém engole”. De todo o fuzuê, no entanto, o que ele mais gostou foi da Sabrina Sato investigando o desaparecimento de Pinpoo. Ela compareceu duas vezes ao seu consultório com um shortinho por aqui, ó.

A Nair, que aguardava a visita do Gugu, também gostou muito da Sabrina, mas reparou mais na simpatia da apresentadora do que nas roupas dela. Enfim... A Nair tem 64 anos, 46 deles fumando, e isso lhe dá uma voz rouca e pigarrenta. Comerciária aposentada, viúva, dois filhos crescidos, ela credita aos anos que trabalhou como atendente de loja de roupas, lidando com o público, o seu português correto, pausado, quase choroso. A Nair treme um pouco nas mãos e no rosto, involuntariamente, respingos da depressão da qual ela vem se tratando desde que sofreu um acidente de carro no ano passado. Ninguém se machucou sério, mas a Nair se sente culpada porque calculou mal a velocidade do carro que vinha e acabou atravessando o cruzamento na hora errada. Seu Fiat Uno ficou imprestável. E o sumiço de Pinpoo quase a deixou do mesmo jeito. Na quarta-feira passada ela me recebeu na casa de um parente para onde tinha se mudado a fim de ficar mais perto do aeroporto – e das buscas por Pinpoo.

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Naquela tarde, a Nair não sabia necas de Fukushima, tsunami, Ras Lanuf, Benghazi, nuvem radioativa ou rebeldes líbios. Por Pinpoo, tinha apertado a tecla pause do dia a dia. Os e-mails ela parou de abrir depois de ler um sujeito dizendo que Pinpoo tinha virado churrasquinho, outro deduzindo sua transformação em barra de sabão e um terceiro resmungando que Nair só queria aparecer, ficar famosa, que isso e aquilo. Resultado: a Nair tomou distância da web, que ela maneja bem. Parou até de formatar os seus slides românticos, aqueles power points que circulam na web trazendo ensinamentos estranhos, poesias ruins, construções na segunda pessoa do singular e musiquinhas tristonhas. (Você certamente já recebeu um, mas não vá odiar a Nair por causa disso; odeie o amigo que te mandou.) Os slides são o principal passatempo dela – depois de Pinpoo. Já fez mais de 500. As palavras nunca são da lavra da Nair, só a boniteza da apresentação. Num dos últimos, ela enfeitou o poema A Vida Dói, assinado por Chacon, com o desenho de uns edifícios piscantes e a figura de uma guerreira alada e de tanguinha. O texto diz assim: “Dói perder, dói saudade, chorar dói, dói dizer adeus, mas o que dói mesmo é arrependimento. Ah se ele matasse...” E estamos só na primeira folha...

A gente entende o que a Nair sente pelo Pinpoo quando ela fala dele e com ele. Pra começar, ela nunca se refere ao Pinpoo, assim, a seco, sem artigo ou pronome. É sempre “o meu Pinpoo”.

"O meu Pinpoo tem o hábito de comer lençóis e cobertores. Estão todos furados."

"Eu nunca chamei o meu Pinpoo por assovio. Uso o nome dele ou, senão, 'meu filho'."

"O meu Pinpoo dorme comigo na cama. O problema é que ele gosta de fazer xixi no travesseiro. Mas está quase aprendendo a usar o jornal e levantar a patinha."

“O meu Pinpoo já tem 74 citações no Google." (Isso na quarta-feira; na sexta eram quase 60 mil)

"O meu Pinpoo exige dois banhos por dia, um antes da sesta e outro ao anoitecer. E eu dou, usando um spray especial que ele ama."

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"O meu Pinpoo é vegetariano, come o que eu como: brócolis, abobrinha, purê."

"Nosso melhor momento juntos? Quando coloquei uma música e o chamei para dançar. Meu Pinpoo veio perto de mim e ficou a me rodear só nas patinhas traseiras."

Não foi por acaso que a Nair rejeitou dois cãezinhos idênticos ao Pinpoo que apareceram nas redondezas do aeroporto depois que a Gol distribuiu cartazes com a foto do verdadeiro e passou a usar as redes sociais em busca de informações. O primeiro sósia a Nair descartou assim que a moça que o tinha encontrado disse que estava com ele desde dezembro. Nessa época, o Pinpoo ajudava Nair com os preparativos do Natal, não podia ser ele. O segundo, muito sujo, pulguento e machucado, fez a Nair balançar. "Eu queria tanto que fosse o meu Pinpoo que realmente achei que pudesse ser. Mas quando o vi de banho tomado, ele não tinha o pelo do lombo mais escuro que me fez dar o apelido de Moicano ao meu Pinpoo. E, depois, quando eu disse ‘vem meu filho, vem com a mamãe’ e ele correu pro lado contrário, tive que admitir: não podia ser o meu Pinpoo."

Acabou que o Pinpoo falso número 1 ficou onde estava e com o nome que tinha: Peludo. Quanto ao número 2, complica um pouco. A Gol pagou as as despesas médicas e estéticas dos animais e disse que bancaria um teste de DNA de R$ 15 mil para ele, caso o Pinpoo verdadeiro não tivesse aparecido. E salientou: já fez mais de 100 mil transportes de animais no Brasil e o ocorrido com o cachorrinho da Nair foi só um acidente de percurso. A Nair promete processar a Gol. Na sexta-feira, a assessoria de imprensa da companhia informou ainda que o Pinpoo falso número 2 ficaria na clínica do doutor Bonetti até ser adotado. Nome que é bom, ele ainda não tinha recebido. Era chamado de Suposto Pinpoo. Ou Suposto, para os íntimos.

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