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E quem pediu ajuda?

Por que a junta militar de Mianmar joga na retranca, criando dificuldades para as agências humanitárias

Por Conor Foley
Atualização:

Mesmo antes de o ciclone devastador atingir Mianmar, no último fim de semana, o país estava precisando desesperadamente de ajuda. O governo diz que 22 mil pessoas morreram e 41 mil estão desaparecidas, cifras bem mais altas que as originalmente admitidas (para os EUA, os mortos podem chegar a 100 mil). O maior problema será o acesso às áreas afetadas. Há muito o governo de Mianmar suspeita de agências de ajuda internacional, e embora tenha aceitado auxílio de agências da ONU que já estão trabalhando no país, as atividades dessas são estritamente controladas. Mianmar só recebe em torno de US$ 3 per capita de ajuda internacional, bem menos que seus vizinhos: o Vietnã recebe US$ 33 , o Camboja, US$ 47 e o Laos, US$ 63. Isso é uma conseqüência das sanções internacionais contra o país que vigoram desde meados dos anos 90. Algumas agências humanitárias, como a Médicos Sem Fronteiras, saíram do país, enquanto a Cruz Vermelha suspendeu seus programas por causa das restrições do governo. Mianmar já foi um dos maiores exportadores de arroz do mundo. Mas décadas de conflitos e descaminhos econômicos provocados por sua reclusa junta militar deixaram boa parte da população do país à beira da inanição. Segundo o Programa Mundial de Alimentos (PMA), da ONU, uma das poucas agências internacionais autorizadas a operar no país, 10% da população não recebe comida suficiente para suas necessidades básicas diárias e 30% vive abaixo da linha de pobreza absoluta. Essa cifra sobe para 70% em muitas áreas rurais. As agências encontram dificuldades enormes em obter permissão para operar. As autorizadas precisam aceitar restrições sobre onde podem trabalhar e precisam submeter suas avaliações, pesquisas e relatórios para serem liberados pelas autoridades. Durante as sublevações do ano passado, a equipe da ONU no país emitiu um comunicado sublinhando as dificuldades enfrentadas pela população para suprir suas necessidades diárias. Embora se apoiasse exclusivamente em estatísticas do governo, o comunicado provocou uma reação enfurecida do regime. Este expulsou o coordenador humanitário da ONU e desde então vem movendo uma perseguição burocrática aos funcionários de agências humanitárias - retardando a concessão de vistos ou recusando credenciamento. Países como Mianmar e Coréia do Norte, onde o PMA também mantém um grande programa, são um verdadeiro dilema para as agências humanitárias: até que ponto elas devem estar preparadas para aceitar essas restrições no interesse das pessoas que estão tentando ajudar? Quando o Afeganistão era governado pelo Taleban, algumas agências humanitárias, como a Oxfam, suspenderam seus programas, recusando-se a cumprir os editos contra mulheres do Taleban. A Oxfam mais tarde concluiu que isso foi um erro que causou mais sofrimento aos afegãos comuns, mas existe uma clara tensão de princípios conflitantes nessas situações. Alguns anos atrás, passei uma semana na fronteira entre Mianmar e a Tailândia conversando com ativistas de oposição sobre direitos humanos e a situação humanitária ali. A maioria achava que a presença da comunidade internacional havia ajudado a dar cobertura ao desenvolvimento da sociedade civil birmanesa (de Mianmar, antiga Birmânia), embora houvesse um nítido dilema sobre quanto o "engajamento construtivo" apenas legitima o regime. Durante uma crise humana, porém, esses cálculos precisam ser deixados de lado, pois o imperativo é proporcionar a ajuda capaz de salvar a vida de pessoas. As agências humanitárias calculam que cerca de 1 milhão de pessoas podem estar sem abrigo depois que o ciclone arrasou suas casas, e suas aldeias simplesmente desapareceram nas inundações. O problema de montar operações humanitárias durante emergências complexas como esta é que é muito difícil separar efeitos de causas como conflitos, desastres naturais e situação política geral. Isso tem dificultado distinguir entre desenvolvimento e ajuda humanitária, porque países como Mianmar vivem hoje uma crise crônica em que os desastres produzidos pelo homem enfraquecem sua capacidade de enfrentar os naturais. Mianmar experimentou várias décadas de conflito e tem havido ali algumas sublevações com motivações étnicas que o regime tem tratado com coerção e cooptação. Isso favoreceu a criação de feudos militares que são efetivamente governados por antigos senhores da guerra. Mesmo quando agências humanitárias obtêm permissão do governo central para operar numa determinada área, elas são com freqüência obrigadas a negociá-la de novo em nível local. O comércio de ópio tem jogado muita lenha na fogueira dos conflitos, e tanto senhores da guerra como o Exército são acusados de recrutar mão-de-obra e cobrar impostos. Isso cria um novo dilema para agências humanitárias, cujo pessoal testemunha com freqüência essas violações. Ignorá-las poderia parecer o mesmo que tolerá-las, mas sua denúncia poderia provocar uma perda de acesso. Na prática, a maioria das agências tende a optar pela negociação direta junto às autoridades e por uma avaliação contínua dos custos e benefícios de sua presença. Algumas têm argumentado que a ajuda deveria ser condicionada à aceitação pelo governo de uma reforma política significativa e ao diálogo com o movimento pró-democracia. Mas, se o governo rejeitar isso, a recusa em ajudar simplesmente aumentará o sofrimento das pessoas mais pobres e vulneráveis. Como me disse um funcionário da ONU recentemente: "Não podemos simplesmente adiar o fornecimento de ajuda até a evolução para uma situação política viável. Os custos humanos para o povo birmanês seriam excessivos". *Conor Foley é pesquisador do Human Rights Centre da Universidade de Nottingham.

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