Ecologia e animação

Se Carlos Minc usar parte de sua coragem, a questão ambiental poderá romper o unanimismo da República

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Por Renato Lessa
Atualização:

A lógica do presidencialismo de animação supõe personagens expansivos, que não tenham parte com a introspecção e muito menos com a depressão. Afinal, a arte de animar as repúblicas exige, mais do que tempo integral, um tipo de convicção imune à hesitação. Meus colegas de ofício designam o arranjo institucional brasileiro como caracterizado por um "presidencialismo de coalizão". O conceito, há cerca de duas décadas introduzido por Sérgio Abranches para interpretar o Brasil da República de 1946, possui indisfarçável notação crítica: para governar, o presidente era obrigado a montar uma ampla coalizão parlamentar, capaz de incorporar representantes de diferentes bancadas partidárias e de diversas regiões do País. Obtinha-se estabilidade para a tomada de decisões, por certo, mas impunha-se o passivo de uma delimitação, digamos, pouco republicana a respeito do que se julgava passível de decisão. Na mão de politólogos mais jovens e menos reflexivos, o conceito transformou-se em um imperativo, quando não em uma preferência. Passou-se algo que evoca a distinção feita, nos anos 50 pelo saudoso Guerreiro Ramos, entre "fundadores" e "escoteiros": os primeiros abrem picadas inéditas e tortuosas, os últimos transformam-nas em "avenidas de trânsito compulsório". Em notação carioca: foi-se a imaginação, sobreveio a caretice. Sou de uma época em que as pessoas eram de direita, de esquerda, extremistas de centro ou não estavam nem aí. Hoje, estupefato, detecto a existência de "presidencialistas de coalizão", como se o termo caracterizasse uma orientação normativa ou existencial. Por algum tempo tentei vestir essa roupagem, dado o caráter aparentemente inamovível das práticas coalicionistas no país. Mas esse esforço acabou por colapsar e vi-me, mais uma vez e, temo, para sempre enredado nas velhas alternativas. (Aos que vociferam que a distinção entre esquerda e direita desapareceu, eu retruco que esse é um argumento da direita. E, se a direita existe, logo a esquerda existe. Além disso, sempre é possível não estar nem aí.) O enfado diante de termos e conceitos que transformam o óbvio em descoberta científica e do reacionarismo de tomar o existente como prefiguração necessária da vida futura levaram-me a introduzir a expressão "presidencialismo de animação", como uma chave possível de avaliação dos hábitos políticos pátrios. Se a coalizão é a forma do regime, a animação é o seu espírito, é o que lhe faz existir e, o que é mais importante, é o que define seus nexos com os que, do lado de cá, perseveram em suas existências ordinárias. A animação, como espírito, exige um operador persistente, uma espécie de locutor cuja voz intermitente explica para a malta o que está a se passar. Para tal, lança mão de juízos comparativos na dimensão do tempo - função semântica do mantra "nunca antes neste país" - e na dimensão do espaço - tal como sugere a pérola que diz o Brasil ser uma "nova China". Ademais, Lula se quer coextensivo ao País. Todos estão em seu governo. Da direita social mais reacionária - representada pelos ruralistas, promovidos à modernidade por força do impacto estilístico da palavra commodity - ao basismo fundamentalista, todos possuem razões para crer que o presidente os entende. Uma oposição dirigida pelo brilho de Agripino Maia e pela temperança de Arthur Virgílio Neto não chega para introduzir fissuras no unanimismo. Chegamos, pois, a alguns termos básicos: coalizão, animação e unanimismo. Mas se a animação e o animador não são meras figuras de uma farsa, devem estar sustentadas em algo externo a si mesmos. O espetáculo do desenvolvimento e o tema do crescimento acelerado - indepentemente de seus contornos, digamos, reais - adequam-se à perfeição. O "nunca antes neste país" refere-se a um megaesforço devotado ao crescimento, cujo substrato é a sacralização das práticas econômicas e produtivas. A produtividade eleva-se à categoria de razão de Estado. Seus resultados visíveis - obras, superávits, riscos decrescentes para rentistas - são matéria nobre para as artes da animação. Limites ao crescimento, por força de imperativos não-econômicos, nem pensar. A própria esquerda, ao trocar os temas da igualdade e da emancipação pelo da inclusão, está convicta de que o bolo não pode parar de crescer. Na difícil arte de dirigir a atonalidade e o descompasso do coro da animação, o presidente sempre foi incomodado pelo compasso e pela afinação da ex-ministra Marina Silva. Um coro daquela natureza exige a atonalidade do espírito. Em visão retrospectiva, pode-se dizer que no coro da animação havia lugar para alguém que, com biografia impecável de militante ambiental e social, sugerisse que a agenda ambiental era para valer. Os efeitos simbólicos da medida foram importantes para a construção da imagem de um país que quer crescer e ser social e ambientalmente justo. Em miúdos, o que se esperava era a confecção rápida de selos verdes em projetos em cujos processos decisórios a área ambiental do governo não tinha lugar. Os que julgavam que a fragilidade pessoal da ministra fosse a contrapartida de sua força moral e política acabaram limitados à metade de suas expectativas. Do ponto de vista moral, nada parece ter sido perdido, mas no que se refere à política e ao ambiente em geral, a coleção de derrotas foi exemplar. Não me refiro a derrotas pontuais - comuns em qualquer governo que administra interesses diversos e contraditórios. Refiro-me à dupla esterilização à qual foi submetida a área ambiental do governo: ausente na definição de prioridades e estratégias; desprovida de meios para conter a devastação. Parece-me um erro de cálculo interpretar a notoriedade expansiva de Carlos Minc como um componente adequado à lógica da animação da República. Em seus seis anos de mandato, no Rio de Janeiro, Minc associou visibilidade midiática à coragem pessoal e sempre esteve do lado certo, tanto no que se refere às causas ambientais como na defesa dos direitos humanos, dois eixos de seus merecidos mandatos como deputado estadual. Pelo que andou a dizer, antes e depois de sua posse, crédulos como eu advinham uma disposição para a briga. Se for o caso, mais do que árvores algo poderá vir a ser salvo. Pelo lado ambiental pode vir a ser quebrado o unanimismo que sustenta a animação da República. Os fundamentalistas da governabilidade consideram o nível de conflito entre interesses econômicos e sociais como marcador de estabilidade/instabilidade e de sustentabilidade da coalizão dita aliada. A agenda ambiental pode muito bem sair de seu nicho específico e ocupar aquele lugar. Se Minc trouxer para o ministério parte da ousadia e coragem que demonstrou ao longo de sua vida, e não se submeter à razão, digo, à animação de Estado, a questão ambiental, corretamente politizada, poderá vir a ser um fator de fissura no unanimismo da República, sustentado por um governo de coalizão entre a UDR e o MST, para ficarmos em seus termos opostos. Os riscos, no entanto, são imensos: afinal, o que fazer quando os desmatadores estão no governo e contribuem para o espetáculo do crescimento? Qual o lugar do ministro do meio ambiente em um governo cujo presidente apresenta o País como uma "nova China"? Em texto que há muito deixou de ser lido, Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, dr. Engels saiu-se com esta: "trata-se de um acontecimento pleno de interesse o processo de dissolução do Espírito Absoluto". Pois bem, quem sabe não se abre a possibilidade de aplicar a frase ao processo de dissolução do unanimismo e da animação. As árvores e a República agradecerão. *Professor titular de Teoria e Filosofia Política do Iuperj e da UFF. É autor, entre outros livros, de Presidencialismo de Animação: Ensaios sobre a Política Brasileira, Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2006 QUINTA, 22 DE MAIO Minc x Maggi, a discórdia Governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, em nota oficial, contesta anúncio feito dias antes pelo novo ministro de Meio Ambiente, Carlos Minc, de que o desmatamento no Estado cresceu 60%. Minc se baseia em dados do Inpe. Maggi os coloca em xeque.

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