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Eles conseguiram expressar seu inferno em versos

Poemas de prisioneiros de Guantánamo são grito de alerta e pedido de ação enviados a toda a humanidade

Por Ariel Dorfman
Atualização:

O protagonista não é Harry Potter, porém o livro que acaba de chegar a minhas mãos encerra mais magia que a criada por J. K. Rowling, e também terrores mais profundos que lorde Voldemort (personagem de ficção e o principal inimigo de Harry Potter). Bem valeria a pena que todo mundo o copiasse para lê-lo. Embora duvide que isso aconteça, já que se trata de um volume minguado, quase insignificante, que, de maneira sub-reptícia, desembarca por esses dias nas livrarias norte-americanas, e contém apenas 21 modestos poemas de autores totalmente desconhecidos. No entanto, são poemas que, por sua origem insólita, constituem um grito de alerta, um pedido de ajuda e, talvez, de ação para a humanidade contemporânea. Foram escritos por prisioneiros do campo de detenção de Guantánamo, aquele lugar de opróbrio operado pelo governo Bush desde a invasão do Afeganistão. Como se sabe, esses detentos foram classificados por Washington de "combatentes inimigos". Isso significa que talvez permaneçam presos por uma eternidade sem serem levados a julgamento, sem que sejam acusados nem possam se defender e sem que, certamente, desfrutem das garantias prometidas por aquelas convenções internacionais, como a de Genebra, assinada pelo Estado norte-americano, e nem ao menos vejam respeitados os direitos humanos que têm pelo mero fato de terem nascido. Não podem escapar do inferno, mas, e mesmo assim, escrevem versos. Mark Falcoff, um dos advogados americanos que defende os cativos e editor responsável pela publicação do livro, relata as condições penosas em que foram produzidos esses poemas - transcritos semiclandestinamente, às vezes gravados com pedra em uma xícara de plástico, às vezes com pasta dentifrícia em embalagens descartáveis, às vezes rabiscados em tênues pedaços de papel, e sempre destinados à memória, sempre transmitidos boca a boca. Para que o mundo pudesse lê-los, Falcoff teve de vencer não apenas o receio dos detentos, mas também a censura e desconfiança do Pentágono, que autorizou a publicação de somente essas estrofes entre milhares de outras que foram confiscadas e destruídas, com a justificativa absurda de que poderiam incluir instruções aos terroristas da Al-Qaeda, que por sua vez não podem continuar a semear a morte sem receber diretrizes de prisioneiros que, há cinco anos, vivem completamente isolados do mundo. Alguns desses poemas têm grande qualidade e eficácia literária, outros não tanto, mas, como observo num prefácio que escrevi para esta edição publicada pela pequena University Iowa Press, todos acabam sendo incrível e inquietantemente comoventes. Aqueles cujos autores são fanáticos e proclamam a luta até a morte contra os infiéis e aqueles que não proclamam outra coisa que o desejo de tocar um filho que não viram nascer ou a mãe que está à morte longe, o desejo de que lhes seja concedida a graça de vislumbrar uma vez mais algo tão comum como a lua que sobe num céu crepuscular. Os que falam da misericórdia infinita de Alá e os que falam do mar cujo ruído ouvem de perto, mas não podem ver. Todos comoventes. Porque, como tantos prisioneiros ao longo da história humana, como aqueles que conheci durante os anos da ditadura de Pinochet e de tantas tiranias em nossa América Latina, também esses homens sem expectativa de liberdade ou justiça recorreram, quase instintivamente, nos piores momentos de sua existência, à poesia para se expressar. Todos, os que confiam em seu Deus para libertá-los, os que confiam em algum impreciso amanhecer e os que perderam toda a crença na possibilidade de ver a luz do dia, todos compreenderam que exteriorizar sua angústia em palavras escritas vem a ser uma aposta contra a desesperança, a única forma que têm de afirmar sua humanidade ferida. A única maneira de se dar alento. Alento, ânimo, ânima, alma, espírito, inspiração, respiração. Porque a origem da vida, a origem da linguagem e a origem da poesia se encontram justamente na aritmética primitiva da respiração. O que aspiramos, exalamos, inalamos, minuto após minuto, é o que nos mantêm vivos num universo hostil desde o instante do nascimento até o segundo anterior a nossa extinção. E a palavra escrita não é outra coisa senão a intenção de ter de volta de maneira permanente e segura esse alento, marcá-lo em um rocha ou estampá-lo num pedaço de papel ou traçar seu significado numa tela, de forma que a repetição possa perpetuar-se além de nós, sobreviver ao que respiramos, romper as correntes frágeis da solidão, transcender nosso corpo transitório e tocar alguém com as lágrimas de sua busca. Respirando. O que esses presos compartilham com seus carcereiros, o que compartilham com soldados que os enjaulam. E os temem. E os vêem exclusivamente como inimigos. A poesia conclama quem respira o mesmo ar a também respirar os mesmos versos, a ultrapassar o abismo que persiste entre corpos, culturas e guerreiros. E talvez seja esse o sentido mais profundo, e também o mais paradoxal, do surgimento desses poemas nos Estados Unidos, resgatados por advogados americanos, impressos por uma gráfica americana, revisados por olhos americanos e publicados nada mais nada menos do que em Iowa, o Estado que se encontra no centro geográfico e simbólico do país que maltrata esses prisioneiros de forma tão perversa. Como agora estão ao alcance de todo o povo americano, palavras que prisioneiros pronunciaram um dia, ou talvez uma noite, agora todos os cidadãos dos Estados Unidos podem ter acesso a esses poemas de ardor e desalento. E se esses cidadãos e esse povo quiserem verdadeiramente, podem conseguir que, algum dia, não sejam apenas os poemas que circulem livremente no mundo, mas também as mãos, os lábios e os pulmões que souberam compô-los. Até que chegue esse dia, o verdadeiro lar desses detentos serão esses versos amargos que escreveram contra o desamparo e a morte, mais que o infame campo de detentos da Baía de Guantánamo.

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