26 de fevereiro de 2022 | 16h00
Antes de se casar com Tom, Lucia Holley “morava com a mãe e o pai, levava uma vidinha pacata e feliz, quase sem sair de casa. Por natureza, era simpática e pouco exigente, e não tinha muito a dizer sobre si. Não tinha talento para a vida social, não almejava ter”. Agora, porém, Tom está lutando no Pacífico há alguns anos, e a rotina de Lúcia, permeada por cupons e a sombra da 2ª. Guerra, sofre um abalo: Bee, sua filha adolescente, está saindo com Ted Darby, um homem de 34 anos. Decidida a retomar a tranquilidade doméstica, Lucia procura o sujeito tentando encerrar o romance, em vão. E como se não bastasse, ele aparece morto. Na lancha dos Holley.
Escrito por Elisabeth Sanxay Holding, que começou a carreira com romances açucarados antes de migrar para a literatura policial, Fachada é muito mais que um thriller: romance feminista de vanguarda – foi publicado em 1947 –, retrato profundo da classe média e da paranoia da 2a. Guerra, crônica demolidora do natimorto sonho americano. A partir do momento em que Lucia abandona seu posto de dona-de-casa-à-espera-do-marido, o que se põe em marcha é também sua emancipação.
Quando o livro começa, em ótima tradução de Stephanie Fernandes, os Holley vivem uma rotina azeitada: Beatrice (Bee), David, o outro filho, e o sr. Harper, pai de Lucia, dedicam-se a escrever cartas, conservar o sobrenome na comunidade local e levar a existência da forma menos arranhada possível. Amparando todos, Sybil, a empregada negra que diz “não dá para mudar o mundo” quando Lucia se revolta contra o vendedor de frango, racista. É Sybil, que conhece Lucia “melhor do que ninguém” e de cuja vida a patroa “não sabia nada”, quem mantém a casa funcionando. Quando o cadáver de Ted Darby surge e Lucia precisa salvar a si mesma – não demora para Bee ser uma desculpa –, a empregada torna-se o esteio cuja falta colapsaria sua vida. É ao apostar nessa dinâmica, pairando sobre Fachada feito um fantasma muito concreto, que Elisabeth Sanxay Holding transforma seu romance em uma obra-prima.
O surgimento de Nagle e Donnelly, figuras do submundo determinadas a chacoalhar a vida dos Holley com chantag
A psicologia de Lucia Holley e os limites que precisam ser cruzados diante de homens tão cruéis antecipam certa mirada existencialista que o detetive Marlowe, de Chandler, adotaria em obras como O Longo Adeus, um marco do gênero, inserindo sua autora entre dois dos maiores cânones da literatura policial: Agatha Christie, com seus livros assépticos, e Patricia Highsmith, criadora de um estilo que privilegia as elucubrações psicológicas.
A transformação de Lucia, muito mais interna que externa – afinal trata-se de manter as aparências –, reside em lidar com um mundo que não lhe é permissivo em nada – “as pessoas que falam que cuidar da casa dá mais liberdade à mulher do que arrumar um emprego são mesmo idiotas”, reflete. Ao assumir as rédeas de sua vida, passa a se despir da aura de mulher da alta sociedade, como queria Nagle, e se transforma numa “Lúcia potência”, que é cortejada no trem e segura o mundo na palma da mão — pense no seu gesto ao que se segue quando Donnelly e Nagle discutem, na sua obrigação diante de um sujeito totalmente desprovido de agência, impactado pela violência de seus próprios atos, ou então quando o tenente Levy diz que é seu dever cumprir a lei e Lúcia indaga “Todas as leis?”.
No momento em que a literatura contemporânea está – felizmente – recheada de obras que refletem sobre as condições da mulher e suas possíveis emancipações, a publicação de Fachada vem em boa hora: ler Elisabeth Sanxay Holding é também incorporar ao debate alguém que, lida quase 80 anos depois, soube se aproveitar de um gênero para subvertê-lo e incendiar a discussão – um fluxo de consciência por vez.
SERVIÇO
FACHADA
ELISABETH SANXAY HOLDING
EDITORA: DBA
256 PÁGINAS
R$ 59,90
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