Em Bali, um plano contra o suicídio

Conferência do Clima apresentou dois mundos: o perecível (dos cientistas) e o fantasioso (dos políticos)

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Por Rubens Ricupero
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"Pior que o desejável, melhor que o provável", poderia ser o resumo do resultado da 13ª Conferência do Clima, em Bali. Os que preferem ficar só com a parte pessimista se esquecem de dizer que eram muito piores os cenários prováveis até a véspera. A função de Bali foi simplesmente dar início a um processo negociador. O documento aprovado é a ata inaugural desse processo: um plano de trabalho, acompanhado de cronograma, metas e datas. Querer mais é confundir ponto de partida com meta final. Não se esperava da conferência mais que um mapa do caminho, sem a precisão dos modernos mapas rodoviários. Na realidade, o documento se assemelha mais àqueles velhos roteiros marítimos portugueses, que traçavam linha hesitante em meio ao Mar de Sargaços ou ao Verde Oceano da Escuridão. Em outras palavras, a navegação vai ser difícil e perigosa, com riscos de naufrágio ao cruzar vastas áreas de incerteza. A primeira delas é sobre a própria natureza do acordo desejado. Trata-se somente de definir a fase seguinte de Kyoto, a partir de 2013, com metas reservadas exclusivamente aos países ricos do Anexo I (pouco mais de 30), como queriam os minimalistas - a Índia, por exemplo? Ou se deve visar a acordo novo, mais abrangente que Kyoto (do qual não são parte os EUA), incorporando de algum modo também os mais de 130 países em desenvolvimento? Graças em boa medida a uma sugestão brasileira na reunião de Montreal (2005), estavam em curso dois canais paralelos. O da mera (e insuficiente) continuação de Kyoto: os países ricos, comprometidos a cortar em 5,2% as emissões de gases-estufa, aprofundariam, no futuro, as reduções de 25% a 40% em relação ao nível de 1990. Os demais continuariam a não fazer nada. Contra esse absurdo, a iniciativa do Brasil foi propor que se abrisse um diálogo sobre ações cooperativas de longo prazo, destinado a viabilizar contribuições dos países ora isentos de obrigações, universalizando e tornando mais efetivo o esforço. A conferência inclinou-se em favor da maior abrangência do futuro acordo ao promover início de convergência dos dois canais num só processo confiado a um Grupo de Trabalho sobre Ação Cooperativa de Longo Prazo (AWG). Luiz Alberto Figueiredo, o diplomata brasileiro escolhido para guiar o órgão, tem todas as qualidades para ser decisivo na construção do consenso, como foi o embaixador Gilberto Sabóia ao salvar do fiasco a Conferência de Direitos Humanos de Viena. Dos dois gigantescos obstáculos a vencer, o de trazer para bordo os países em desenvolvimento talvez seja mais alcançável do que o de superar o obstrucionismo dos EUA. Esse primeiro desafio consiste em dar aplicação concreta ao princípio sobre "responsabilidades comuns, mas diferenciadas". Ele apenas reconhece fato indiscutível: as nações pobres pouco tiveram a ver com a acumulação de gases-estufa desde a Revolução Industrial, nem têm dinheiro ou tecnologia para fazer muito a respeito. A responsabilidade delas é, portanto, "diferenciada", menor, o que não quer dizer "falta de responsabilidade". Significa diferenciar entre elas de acordo com seus níveis, tratando-se a China e a Índia de forma mais exigente que o Haiti e a Somália. Foi encorajador ver que o Brasil, a China e a África do Sul deram o exemplo, abrindo caminho para o mais significativo avanço da conferência de Bali: o reconhecimento de que as ações de mitigação dos países em desenvolvimento devem ser "mensuráveis, reportáveis e verificáveis". Não se chegou a metas obrigatórias de redução para esses países. Isso depende, é natural, do grau de sacrifício maior que os ricos aceitem na negociação, inclusive em termos de apoio com tecnologia, financiamento e assistência técnica. Argumentando que China e Índia deveriam ser tratadas já como industrializadas, a Casa Branca ensaiou repudiar o consenso a que se vira constrangida a aderir no fim da reunião, após inéditas vaias do plenário. Embora melhor que a alternativa, a decisão americana de não obstruir o consenso universal foi tomada no extremo limite de comportamento consternador da parte do país que deveria exercer a liderança moral e intelectual do processo. O contínuo obstrucionismo dos EUA põe em perigo a meta de terminar a negociação na reunião de Copenhague (2009), dando tempo para a ratificação do novo acordo antes da expiração da primeira fase do protocolo de Kyoto em fins de 2012. A infeliz circunstância de que mais de 60% do período negociador coincidem com o final do governo Bush gera desesperador círculo vicioso. A recusa de metas obrigatórias pelos EUA inviabiliza pressionar a China a alterar modelo responsável pela inauguração de uma usina de carvão por semana. Culpado principal do aumento de mais de quatro vezes da taxa de emissão, dos 0,9% ao ano na década de 1990 para 2,9% desde 2000, o modelo chinês serve de pretexto adicional à má vontade americana e vice-versa. Sem os dois maiores poluidores do planeta, que estímulo existiria para os demais assumirem sacrifícios que se mostrarão de qualquer modo insuficientes? Dizia Churchill que os americanos farão sempre a coisa certa "depois de terem esgotado todas as alternativas". Se assim for, teremos de esperar que o próximo ocupante da Casa Branca seja menos desastroso que o atual, o que não é difícil. Afinal, nada menos de 600 cidades e 25 Estados americanos, alguns do porte da Califórnia, já adotaram metas de redução às vezes mais ambiciosas que as do Reino Unido. A luta contra o aquecimento global é a causa na qual o futuro presidente poderá melhor recuperar a legitimidade e o prestígio que os EUA perderam com a invasão do Iraque e os horrores de Guantánamo. Sem a participação e a liderança dos americanos será impossível, na prática, vencer o desafio no pouco tempo que resta. É essa a maior incerteza do Mar Oceano à nossa frente, cabendo a Washington até agora o papel do mostrengo "imundo e grosso" que ameaçava os pilotos de D. João II. Por sorte, outra incerteza, a da nebulosa posição brasileira, começa a se dissipar após a decisiva postura do Brasil não só no processo e nas metas para países em desenvolvimento, mas na inclusão das florestas nativas. Dez anos atrás, foi o Brasil que se opôs à essa inclusão no protocolo de Kyoto. Não podia durar um bloqueio inspirado em posição defensiva e de interesse apenas dos devastadores. Afinal, o desmatamento já responde por cerca de um quinto das emissões de dióxido de carbono, mais que todo o setor de transportes. Conforme mostra o relatório do painel da ONU sobre clima, 65% do que se ganharia em redução de carbono oriundo da floresta se concentra nos trópicos. Metade disso seria obtida apenas evitando o desmatamento, o que realça o potencial e a responsabilidade do Brasil. Com política mais clara e pragmática, o País e os Estados amazônicos poderiam se beneficiar de recursos bilionários para nos ajudar a cuidar do que é nosso próprio interesse: valorizar a floresta em lugar de apressar a destruição da qual seremos as principais vítimas. Além do Plano de Ação, Bali aprovou uma vintena de resoluções e seria injusto julgar o resultado apenas à luz do veto dos EUA à adoção explícita da meta do corte de 25% a 40% até 2020. É verdade que a preferência americana por meta mais distante - a redução pela metade das emissões até 2050 - revela perigosa falta de urgência em fazer frente ao que o secretário-geral da ONU descreve como "o desafio definidor do nosso tempo". Bali não foi capaz de dissipar a ilusão de que ainda vivemos em dois mundos. O dos cientistas, que estimam entre 10 e 15 anos, no máximo, o tempo disponível para estabilizar o volume de gases-estufa e começar a reduzi-lo vigorosamente. Depois disso, será tarde demais porque se desencadearia cadeia catastrófica de efeitos irreversíveis. Esse é o mundo de verdade, o único que temos. O outro é o mundo de faz-de-conta de políticos ligados a interesses econômicos poluidores e funcionários medíocres. É preciso que essa gente deixe o mundo de fantasia e desça com urgência à Terra. Aqui é que se multiplicam os Katrinas, a floresta amazônica vira fumaça, a calota polar se derrete, o nível dos oceanos se eleva, ameaçando afogar países e cidades, entre elas partes consideráveis do Rio de Janeiro e de nossas cidades e baixadas litorâneas. No planeta real, há carência de líderes esclarecidos, e o Brasil teria tudo para ocupar espaço com papel construtivo, como teve na conferência do Rio de Janeiro de 1992 e ao lançar a idéia do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. A rigor, o ambiente é a única área na qual somos potência, isto é, em que nenhum acordo decisivo pode ser alcançado sem nós. A razão é simples: temos a maior floresta tropical, um dos principais reservatórios de água doce, biodiversidade inigualável, matriz energética limpa e a mais longa experiência de êxito com biocombustíveis. Aproveitar esse potencial exige que o Brasil abandone a defensiva em matéria de preservação da Amazônia e seja ele próprio, com posição não sectária, diferenciada dos EUA, mas também distinta dos de matriz "suja", como a China e a Índia. Com a bomba atômica, escreveu Emmanuel Mounier, o suicídio coletivo tornou-se uma possibilidade pela primeira vez na história. Prevaleceu, no entanto, o equilíbrio e mesmo nas crises mais alarmantes da Guerra Fria, nunca se chegou a apertar o botão da catástrofe nuclear. O desafio do aquecimento global é mais insidioso porque demora a fazer sentir seus efeitos: quando eles se tornam perceptíveis, é demasiado tarde. O futuro do clima após Bali vai depender de que países como o Brasil sejam capazes de ajudar a humanidade a evitar que o suicídio coletivo ocorra agora não com um estrondo, mas com um gemido, como no poema de T. S. Eliot. *Rubens Ricupero é jurista, diplomata, ex-secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) e presidente do Instituto Fernand Braudel

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