'Em Busca de Watership Down' ganha reedição e novo filme de animação

Clássico da literatura fantástica, livro de Richard Adams, morto em 2016, é reeditado no Brasil e ganha

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Por André Cáceres
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Fábulas britânicas só são infanto-juvenis para inglês ver. Desde as peripécias linguísticas nonsense de Lewis Carroll, passando pelas interpretações políticas, filosóficas e religiosas de J.R.R. Tolkien, até a violência nua e crua de Richard Adams, cuja obra-prima, Em Busca de Watership Down (1973), está sendo publicada no Brasil pela editora Planeta. Assim como Tolkien, que no início de O Senhor dos Anéis adverte o leitor sobre sua aversão às alegorias, Adams alerta que o livro é “só uma história sobre coelhos inventada e contada no carro para minhas filhas.” Em ambos os casos, porém, há muito mais do que parece sob a superfície fantástica.

Cena da animação 'Watership Down' (1978), de Martin Rosen, com trilha sonora de Angela Morley, compositora trans que tornou-se parceira de John Williams Foto: Warner Home Video

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Quando Quinto, um coelho com visões premonitórias, tem um pressentimento pouco auspicioso sobre o futuro de seu viveiro, ele e Avelã – um líder nato – organizam uma expedição rumo a uma espécie de terra prometida. As previsões de Quinto tragicamente se confirmam e o viveiro antigo é destruído pela especulação imobiliária, no que se pode argumentar que é uma camada ambientalista para esse livro em que se amontoam significados a cada novo capítulo. No caminho para a mítica colina de Watership Down (que existe de fato na Inglaterra), os coelhos enfrentam cães, raposas, aves, travessias de rios... Mas, à moda dos humanos, seus principais algozes são outros coelhos.

Adams manipula a percepção do leitor com maestria e nos coloca na pele (ou no pelo?) dessas presas mortificadas por qualquer farfalhar na floresta: “Para os coelhos, tudo que é desconhecido é perigoso. A primeira reação é se assustar, a segunda é correr.” Assim, vemos os enigmáticos aparatos humanos e nossas atitudes sem sentido pelos olhos dos coelhos: “Ninguém entende os motivos de os humanos fazerem as coisas”, diz Topete, o coelho mais forte do grupo de Avelã, que protagoniza alguns dos momentos mais dramáticos da jornada.

Construção de mundo é uma característica comum na literatura fantástica, mas o nível de detalhamento dessa mitologia felpuda é digno de nota. Os animais contam mitos sobre o deus-sol Frith e El-ahrairah (ou “O Príncipe com Mil Inimigos”), um coelho tão malandro e antigo que “o próprio Ulisses pode ter emprestado um truque ou outro” dele e cuja quantidade de filhos reflete a fertilidade da espécie. Esse conto de fadas moderno pode ter influenciado outro britânico, Neil Gaiman: as trapaças do deus-aranha Anansi em Os Filhos de Anansi (2005), inspirado em lendas africanas, assim como os logros de Loki em Mitologia Nórdica (2017), lembram muito as falcatruas de El-ahrairah. 

A caminho de Watership Down, o grupo de Avelã se depara com dois viveiros que oferecem chaves de leitura essenciais para a obra. O primeiro, sem predadores e com comida de sobra, que aparece jogada na grama, tem coelhos com hábitos esquisitos: danças ritualísticas, poesia e monumentos. No entanto, não contam as histórias de El-ahrairah. Logo, Quinto percebe que eles são criados por um humano que, de vez em quando, mata algum. O conformismo dessa comunidade contrasta com o pavor dos selvagens diante da morte. “Eles viviam como queriam viver e o tempo todo alguém desaparecia (...) Sabiam exatamente o que estava acontecendo, mas até entre eles fingiam que estava tudo bem (...) Eles, então, descobriram outras artes maravilhosas para substituir os truques e as histórias antigas.” A arte é a consciência da inexorável finitude da vida: os coelhos que sabem da morte humanizam-se e produzem arte como memento mori. 

O segundo viveiro por onde passa a trupe é Efrafa, um local distópico governado pelo opressor general Vulnerária, que reparte a sociedade em facções estanques, controla rigidamente a rotina, gerencia os horários de silflay (palavra do idioma lapino que significa “subir à superfície para comer”), e pune dissidentes. Avelã e Vulnerária, estadistas diametralmente opostos, confrontam-se com formas distintas de se fazer política. Enquanto o general estabelece uma ditadura, Avelã estimula a liberdade e promove pactos improváveis com outras espécies, como um rato e uma gaivota que se revelam aliados úteis no decorrer da trama. Em tempos intolerantes como esses, Avelã tem muito a ensinar aos nossos líderes.

O livro foi adaptado em uma animação de Martin Rosen de 1978, com trilha sonora da compositora trans Angela Morley, parceira de John Williams, de Star Wars e muitos outros. Outra animação, feita em parceria entre BBC e Netflix, com vozes de John Boyega, James McAvoy e Anne-Marie Duff, está prevista para 2017 no serviço de streaming.

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As epígrafes que abrem cada capítulo do livro, com citações de Jane Austen, William Blake, Shakespeare e outros, provam que a intenção de Richard Adams, morto em 2016, não era escrever uma mera história para crianças. Como na fantasia de C.S. Lewis, Gaiman, Tolkien, Carroll e Edward Lear, Em Busca de Watership Down usa da anarquia do universo infantil para subverter a rígida ordem social adulta. Fábulas nos fazem lembrar que não passamos de animais. E, por Frith, que isso é bom.

Capa do livro 'Em Busca de Watership Down', de Richard Adams 

Em Busca de Watership Down Autor: Richard AdamsTradução: Rogério GalindoEditora: Planeta 464 páginas R$ 74,90

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