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Em 'Elas Marchavam sob o Sol', Cristina Judar pensa o enclausuramento feminino

Romance fragmentário une lirismo e denúncia em narrativa polifônica sobre mulheres e seus aprisionamentos cotidianos

Por André Cáceres
Atualização:

Desde Oito do Sete, romance ganhador do prêmio São Paulo de Literatura, a prosa de Cristina Judar flutua entre o poético, o alegórico, o íntimo e o surrealista. Suas personagens verborrágicas acumulam metáforas em seu linguajar, abrindo o leque interpretativo de suas reminiscências. Vão do fantástico ao confessional em uma vírgula. Em seu novo romance, Elas Marchavam sob o Sol, a autora não abre mão do lirismo, mas apresenta uma preocupação maior com a narrativa, entrelaçando histórias de mulheres de contextos diferentes, mas unidas sob o signo da resistência.

A escritora Cristina Judar, autora de 'Elas Marchavam sob o Sol' (Dublinense) Foto: Tânia Judar

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Em um romance fragmentário — que mescla a linguagem de cartas, artigos mágico-científicos, roteiros de propagandas de televisão — e altamente polifônico, alternando as vozes de personagens como a jovem Ana, a mística Joan e diversas presas políticas torturadas durante a ditadura militar, Judar retoma temas caros à sua literatura, como a violência contra a mulher, os direitos reprodutivos, a atração e pulsão erótica entre corpos femininos, mas sempre sob o signo do enclausuramento. Sintoma dos efeitos da pandemia de covid-19? De acordo com a autora, não. O livro já estava praticamente concluído quando o novo coronavírus a obrigou a se isolar em casa, há mais de um ano.

“A questão do cárcere está presente no livro inteiro, ele fala muito sobre o encarceramento”, afirma Judar ao Estadão. “Seja através de conceitos, preconceitos, valores, os nossos corpos, que acabam representando algumas formas de cárcere, etapas da vida... Enquanto eu trabalhava no livro, me vieram muitas outras questões de encarceramento. Foram se somando todas essas formas de aprisionamento, de ordem política, religiosa, até de valores estéticos, no sentido de que a mulher que não tem o corpo em um certo padrão vai sofrer certas punições.”

Uma das modalidades de aprisionamento que se repete ao longo do romance é a ideia de estar dentro de um pote. A protagonista Ana, por exemplo, a certa altura, encerra uma libélula em um vidro e observa suas forças se esvaindo. Em outro momento, como em Enclausurado, de Ian McEwan, um feto em um pote ganha voz: “Emboraeusejaumembriãoabortado,seidemuitascoisasdavida. Os místicos talvez afirmem serem lembranças de encarnaçõespassadas,maseudigotratar-seapenasda minha memória celular.”

Para além dessa questão, Ana vocaliza muitas das inquietações da autora a respeito dos padrões de beleza. É ela quem assiste ao comercial de um produto emagrecedor numa cena narrada por meio de um roteiro publicitário, e é ela também quem diz frases como: "Eusabiaqueovalor a mim atribuído corresponderia ao percentual de partes moles ou duras no meu corpo."

Na contramão de Ana, a outra protagonista Joan vem de um contexto místico, tem uma avó que é perseguida e capturada por bruxaria, entra em contato com forças transcendentes por meio de rituais, mas acaba se deparando com o universo realista e contemporâneo de Ana. “Existe essa diferença, como se elas existissem em frequências totalmente diferentes, o que não necessariamente diz respeito ao tempo ou espaço”, comenta Judar. “As frequências com que elas passam pelas vivências são bem diferentes. No decorrer do livro eu mostro as diferenças, mas também as similaridades entre elas. A maneira como elas refletem o mundo. Nesse espelhamento, uma revela um pouco sobre a outra.”

A caça às bruxas em que Joan se encontra tem uma dimensão metafórica, que se revela quando ela, ao tomar uma bebida ritualística e entrar em contato com entidades místicas, uma dessas criaturas lhe fala: “"Homens que batem à porta a fazerem perguntas jamais serão bem-intencionados. Se mexem nas panelas e vasculham os potes e as tradições, pior. Se perguntam se há crucifixo na casa,é recomendável partir antes que voltem. Porque eles voltam."

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“A caça às bruxas acontece hoje de diversas formas se formos olhar para o cenário político”, afirma Judar. "A caça às bruxas às mulheres trans acontece há quanto tempo? Cotidianamente a gente ouve histórias de mulheres apedrejadas das mais diferentes formas. Então pensando nas mulheres que foram presas políticas na ditadura, na religiosidade não cristã, na perseguição que se vê de alguns líderes de religiões de matriz africana, é esse o tipo de perseguição que afeta diretamente a avó da Joan.” 

Além de seu novo romance, Judar terá dois contos publicados na publicação Cuíer - Queer Brasil, da editora norte-americana Two Lines Press, traduzidos para o inglês por Lara Norgaard. A antologia conta ainda com João Gilberto Noll, Caio Fernando Abreu, Cidinha da Silva, Angélica Freitas, Carol Bensimon, Raimundo Neto, Carla Diacov e Marcio Junqueira. 

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