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Em 'Lucky Jim', Kingsley Amis faz uma sátira do mundo acadêmico

Romancista narra as humilhações vividas por Jim Dixon, jovem professor universitário da região central da Inglaterra

Por Martim Vasques da Cunha
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O psiquiatra inglês Anthony Daniels (conhecido pelo excêntrico pseudônimo de Theodore Dalrymple) afirmava que uma das melhores definições do que é o inferno seria um lugar – de preferência, um simpósio ou uma universidade – só com intelectuais. Kingsley Amis, escritor da mesma cepa britânica, concordaria perfeitamente com essa observação. Não foi à toa que ele escreveu um romance sobre o que significa viver neste ambiente – e o resultado é esta pérola chamada Lucky Jim.

O romancista inglês Kingsley Amis (1922-1995) em foto de 1985 Foto: Bryn Colton/Getty Images

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Por uma dessas ironias a lá Evelyn Waugh, Kingsley passou a ser conhecido do grande público por ser o pai de uma das grandes estrelas da literatura contemporânea – Martin Amis, o enfant terrible que publicou Grana, Campos de Londres, A Informação e Experiência, livros que revelam um preciosismo de estilo raros, mas uma ausência de preocupação pelo ser humano que chega a ser irritante. A literatura de Kingsley fazia justamente o contrário: privilegiava o coração dos homens, sem descuidar do estilo – e mais: sem perder o humor.

A superioridade do pai em relação ao filho não é apenas uma questão biológica ou cronológica. É sobretudo literária – e o fedelho só tem de agradecer ao surgimento de Lucky Jim. Lançado em 1954, no início daquele movimento literário britânico que depois seria chamado de Angry Young Men – cuja explosão nos daria os Beatles e os Rolling Stones –, o segundo romance de Amis satiriza as humilhações que Jim Dixon, jovem professor universitário na região central da Inglaterra, precisa passar no mundo acadêmico. A lista deste “batismo de fogo” vai desde puxar o saco de seu tedioso professor (o patético sr. Welch), passando por enfrentar as neuroses românticas de uma histérica que acabou de tentar o suicídio (Margaret), até a descoberta de que o que realmente lhe interessa não é a Idade Média a qual deveria estudar e sim as curvas da namorada do filho de seu tutor.

O que diferencia Kingsley dos seus pares – entre eles, o poeta Philip Larkin, para quem o romance é dedicado (algo criminosamente omitido na edição nacional, sem nenhum motivo) e que teria praticamente coescrito Lucky Jim com Amis – é a naturalidade com a qual ele narra todas essas situações. Há uma leveza no ritmo, e ao mesmo tempo uma seriedade jocosa, que dão ao escritor inglês a chance de tirar sarro do mundo acadêmico, sem deixar de vê-lo com uma inesperada compaixão.

Pois este sempre foi o segredo de Kingsley Amis (e a grande falha de seu filho, Martin): ele sabia que as motivações dos seus personagens, independentemente do ambiente social onde se encontram, têm origem na educação sentimental de cada um. Em Lucky Jim, Amis relaciona a vida universitária – e, portanto, a vida do conhecimento – com a vida erótica de uma maneira que só pode ser comparada aos procedimentos dramatúrgicos de uma contemporânea sua, a filósofa e também ficcionista Iris Murdoch. O importante, para este fã inusitado dos romances de espionagem de Ian Fleming (chegou a escrever um livro da série James Bond), não é a risada pela risada, mas sim o que a sátira faz com a consciência de todos nós: estimular o discernimento e entender que a condição humana somente é plena se assumirmos a responsabilidade por nossas escolhas.

Porém, Jim Dixon não pensa (e não age) dessa maneira. Sua hesitação entre os dois amores que surgem no seu caminho é paralela ao tédio que ele sente por estudar a “Feliz Inglaterra” que agrada somente ao professor que pode lhe ajudar a manter um emprego de fome na cátedra universitária. E é aqui que Kingsley Amis exibe o frescor da sua literatura: se ele não julga os atos do seu personagem, fica evidente que ele também não os endossa. O humor não é isenção. É diagnóstico.

E o que ele analisa com frieza é que Dixon só não se tornou um “Intelectual Porém Idiota” (termo de Nassim Taleb) porque há um “fundo insubornável do ser” nele. Sua recusa de fazer uma escolha entre as mulheres que podem mudar a sua vida é a recusa do acadêmico que não sabe mais o que faz o mundo girar – uma doença do espírito que seria depois desenvolvida por Saul Bellow em seus grandes romances dos anos 1960 (em especial Herzog, que pode ser lido como um Lucky Jim americano).

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E o que faz o mundo girar, como diria a velha canção? Para Amis, nada mais, nada menos que a pura sorte. Foi isso que tirou o pobre Jim Dixon do inferno que é viver no meio de intelectuais – sendo que, aqui, todos são completamente idiotas, sem exceção. De resto, a ironia desta pequena obra-prima que é Lucky Jim também nos faz ver que, se a sorte é o eixo dos acontecimentos mundanos, não demorará muito para que uma outra ironia – mais cruel, mais ferina e nem um pouco alegre – atinja a cada um que não usufrua das suas benesses.

Afinal, como o próprio pai de Martin escreveu no final da sua vida: “A morte tem tanto o que dizer sobre ela: / Você não precisa sair da cama./ Seja lá onde você estiver/ Eles a trazem para você – de graça”. Risque a palavra “morte” nesses versos e substitua-a por “sorte” – e veremos que Kingsley Amis já sabia, logo no início da sua longa carreira literária, sobre como nada nesta vida acontece sem a mistura do alegre com o trágico, do alívio com o sufoco – e do riso com a amargura. *MARTIM VASQUES DA CUNHA É AUTOR DOS LIVROS ‘CRISE E UTOPIA – O DILEMA DE THOMAS MORE’ (VIDE EDITORIAL, 2012) E ‘A POEIRA DA GLÓRIA – UMA (INESPERADA) HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA’ (RECORD, 2015); PESQUISADOR PELA FGV

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