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Em torno de um bordão familiar

A esperança vencerá o medo?, perguntam-se os americanos. Por enquanto, os principais candidatos lidam em público com (diferentes) temores particulares

Por Andrew Sullivan
Atualização:

Na caótica, pitoresca e catártica campanha para as eleições primárias americanas, a conclusão é que esta será uma eleição elucidativa. Num campo completamente aberto - com nenhum presidente ou vice-presidente no cargo entrando na disputa, e tanto republicanos como democratas fazendo planos para um mundo ideológico que voltou a ficar incerto -, duas emoções fundamentais borbulham na superfície. A disputa está entre a esperança e o medo dos americanos. As razões do medo são óbvias. Os Estados Unidos ainda estão procurando se conformar com o impacto dos atentados de 11 de setembro de 2001 e de duas penosas guerras, no Afeganistão e no Iraque. O país também vive uma onda imigratória - na maior parte, ilegal e incontrolável - jamais vista desde o início do século passado. Nos últimos anos, certezas antes consolidadas se espatifaram: os EUA estão protegidos contra um ataque militar direto; os EUA, em sua maioria esmagadora, são uma nação cristã; os EUA não torturam prisioneiros; se acontecer o pior, por exemplo, um furacão como o Katrina, o governo federal virá em socorro. Tudo isso vem sendo questionado. São tempos desalentadores, sem rumo certo, e os candidatos que basearam sua campanha no medo - e na capacidade para apaziguar e tranqüilizar - conseguiram ficar mais em evidência. Entre os republicanos, Rudy Giuliani apostou tudo em sua resposta aos ataques do 11 de Setembro. O temor da Al-Qaeda ressoou em cada discurso. O assassinato de Benazir Bhutto pode ser encarado como um grande benefício para sua campanha. Mas, no final, seu compromisso cabal de contra-atacar a qualquer hora e em qualquer lugar não foi tranqüilizador. Alarmou. O temperamento volúvel de Giuliani, seu egotismo ardente e sua disposição em tratar todos como inimigos o puseram em desvantagem. Ele caiu consistentemente nas pesquisas durante 2007. Mitt Romney apresentou-se, no início, como um otimista inveterado. Infelizmente, seus discursos muitas vezes pareciam invocações robóticas de temas desenterrados dos anos 80. Mas o otimismo logo se converteu em medo - especialmente dos imigrantes ilegais, tendo ele até censurado Giuliani por ser muito indulgente com os "ilegais". No caso dos evangélicos, desconfiados com o mormonismo dele, Romney contou com uma nova série de medos. Prometeu lutar para tornar o aborto ilegal e banir os direitos dos casais gays na própria Constituição. Mike Huckabee, o principal rival de Romney, seguiu outro programa de ação. Sua credibilidade como candidato veio do fato de ele ser o único fundamentalista que realmente crê. Num Partido Republicano reformulado por George W. Bush e Karl Rove como um movimento religioso, ele era "um de nós". Seu bom humor e sua perspicácia levaram muitos a achar que ele é uma confluência de Ronald Reagan e Bill Clinton. No entanto, foi sua proposta econômica que atraiu os republicanos da classe trabalhadora. Num mundo onde a globalização inquieta muita gente, Huckabee é o primeiro candidato republicano a atacar rasgadamente o livre comércio e o capitalismo de mercado sem controle. Mostrando-se enfurecido com Wall Street, ele explorou temas populistas que têm uma força particular em Estados como Iowa. Mas, num mundo perigoso, seu total desconhecimento de política externa é um grande risco. Diante do caos no Paquistão, ele parece uma aposta perigosa. Do lado democrata, John Edwards transformou sua mensagem edificante das eleições de 2004 numa ladainha populista contra os endinheirados e poderosos. Declarando que o regime fiscal foi manipulado em favor dos ricos, o sistema de assistência à saúde é cruelmente indiferente com os trabalhadores americanos e Washington é controlada por lobistas abastados e corruptos, ele insistiu em que, sozinho, conseguirá combater as forças que se erguem contra os humildes. Ninguém explorou a política do medo tão intuitivamente como Hillary Clinton. Seu medo mais profundo e mais antigo é dos republicanos. Em conseqüência, ela há muito pratica a política de primeiro procurar neutralizar o inimigo para só depois tentar fazer alguma coisa de positivo. Essa é uma cicatriz deixada nela pelas eras Reagan e Newt Gingrich - e suas maiores feridas foram o fiasco de seu plano de assistência à saúde, em 1993, e o pesadelo do processo de impeachment contra o marido, no segundo mandato. Seu maior trunfo para o Partido Democrata é que ela consegue resistir aos ataques da direita. E, enquanto os democratas temerem mais os republicanos de Rove do que acreditarem neles mesmos, ela vence. Na batalha com seus camaradas democratas, Hillary também recorre ao medo do desconhecido. Quando os dados das pesquisas favorecem Obama, a equipe de Hillary lança uma torrente de ataques negativos: os republicanos vão jantar o jovem Obama; vão desacreditá-lo como ex-usuário de cocaína, muçulmano, negro. A própria candidata, na falta de divergências políticas mais sérias com Obama, alega em sua campanha que possui a experiência que Obama não tem. Para aqueles que temem o risco num mundo em guerra, Hillary é uma aposta mais segura que o jovem sonhador de Illinois. E, se tudo falhar, Bill Clinton estará por perto - uma apólice de seguro para os mais nervosos. Tudo isso deixa um único candidato viável de cada lado. São o menos amedrontado e o mais esperançoso. John McCain, o senador republicano e herói da Guerra do Vietnã, e Barak Obama. Sim, a experiência de McCain surge como uma grande força em um mundo instável. Mas o que impressiona na sua candidatura é que ele assumiu posições mais avançadas do que muitas das adotadas por seus rivais mais jovens. McCain é o único republicano que quer realmente resolver o problema das mudanças climáticas. Defrontado com uma base republicana furiosa com a imigração ilegal, ele mantém sua opinião de que os imigrantes ilegais precisam ser assimilados e defende um projeto de lei elaborado por ele e o senador democrata Ted Kennedy para que isso se concretize. Também de maneira corajosa, afirma que os EUA não precisam torturar prisioneiros e que a guerra no Iraque pode ser ganha. Como candidato da honra, ele também se tornou o candidato da esperança - especialmente no que se refere ao Iraque. Viu sua cotação subir repentinamente em New Hampshire e, se conseguir impedir que Mitt Romney ganhe impulso, ainda tem chance de ser bem-sucedido. Obama, naturalmente, baseia toda sua candidatura no título de seu livro de campanha, The Audacity of Hope (A Audácia da Esperança). Os medrosos têm todas as razões para olhar para o outro lado. Se você não acredita que um negro possa ser presidente; se não acredita que os EUA possam se arriscar a falar com os líderes do Irã ou sair do Iraque sem perder a guerra mais ampla; se você acha que é ingênuo ter esperança de que a polarizadora guerra cultural dos últimos 40 anos possa um dia acabar; se você duvida que um homem chamado Obama, que um dia freqüentou uma madrassa secular na Indonésia, possa conquistar a maioria de votos americanos, você deve, de fato, votar em Hillary Clinton. Obama sabe disso e confronta tudo de forma direta. Nos últimos dias, seu apelo vem sendo francamente simples. "A questão é esta", pergunta ele, "você acredita em mudança? Acredita, do fundo da alma, que podemos fazer melhor do que estamos fazendo?" Neste exato momento, existem razões poderosas e verdadeiras para se ter medo. Não é loucura desejar o conforto de um ex-presidente voltando à Casa Branca; não é mistério que, num mundo de terror, globalização e imigração em massa, a cautela seja um impulso poderoso. Os americanos têm que tomar uma decisão corajosa, seja do lado republicano ou democrata. Devem assumir um risco ou se ater ao que já conhecem? Devem ousar ser otimistas ou confiar no pessimismo que nesses últimos anos tem sido um bom guia para um mundo cada vez mais soturno? Depois de acompanhar essa corrida eleitoral durante um preâmbulo quase interminável, tudo o que posso dizer é que não consigo imaginar uma disputa mais construtiva do que entre Obama e McCain. As perspectivas ainda são contra isso. Mas a possibilidade, hoje, é mais concebível que em qualquer momento do ano passado. E isso me lembra algo. Em Tel-Aviv, algum tempo atrás, começou a aparecer um slogan grafitado nos muros: "Know hope" (Conheça a esperança). Em pleno conflito entre árabes e israelenses, quando o otimismo parecia alguma coisa ilusória, essa frase se propagou. Um slogan simples e, como o novo ano se inicia, vale a pena nos fixarmos nele, quando alguns americanos, num estado invernal, decidem em que direção levar seu país. Know Hope. *O inglês Andrew Sullivan é jornalista, escritor e blogueiro. Foi editor do jornal The New Republic, trabalha na revista Atlantic Monthly e colabora como comentarista político nos principais jornais do mundo QUINTA, 3 DE JANEIRO Corrida à Casa Branca O democrata Barack Obama e o republicano Mike Huckabee vencem o caucus de Iowa, que inaugura o processo eleitoral americano. Eles agora se preparam para o difícil teste que terão em New Hampshire, onde nenhum dos dois é favorito.

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