Encaixotaram Marilyn

Ela passou por tudo na vida: maus-tratos, divórcios, a morte prematura.[br]Agora, ser levada aos porões da burocracia brasileira, aí também já é demais

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Por Flavia Tavares
Atualização:

Ali deitada, nua, coberta de bolinhas de isopor, encaixotada em um contêiner de madeira, ela acordou confusa, sufocada, sem saber exatamente onde estava. Pelas vozes masculinas que ecoavam, imaginou estar num lugar grande, de pé direito alto, talvez um galpão. Pouca luz atravessava as frestas da caixa em que estava confinada. Telefones tocavam lá longe. Sons de páginas e páginas virando davam a impressão de que ela estava cercada por montanhas de papel, de trabalho acumulado. Ela estava exausta. Tentou descansar. De olhos fechados, não podia evitar as lembranças de tempos mais glamourosos. Se ao menos alguém lhe servisse uma tacinha de Don Pérignon... Flash! Ela agora recordava as borbulhas do champanhe estourando em sua boca carnuda, fazendo cócegas em seu nariz arrebitado, enquanto aquele fotógrafo bonitão capturava sua imagem para publicar na revista Vogue americana. Nossa, foi há tanto tempo! Mas, enquanto não descobria onde estava, ela revivia aqueles três dias de sessão fotográfica como se tudo tivesse acontecido na véspera. Marilyn Monroe chegara ao hotel Bel-Air, em Los Angeles, às 19 horas do dia 23 de junho de 1962. Estava cinco horas atrasada, mas até que não era muito - normalmente, ela aparecia 14 horas mais tarde que o combinado. Na suíte 261, o fotógrafo Bert Stern a esperava com uma proposta tentadora: queria que Marilyn posasse nua para sua câmera. Seria a primeira vez desde 1953, quando a musa fez aquelas fotos para o calendário da edição inaugural da Playboy. E ela já não era tão garota. Estava com 36 anos, havia acabado de passar por um divórcio do dramaturgo Arthur Miller e por uma cirurgia de vesícula que lhe deixara uma cicatriz horrorosa e... Ok, nada que mais duas garrafas de Don Pérignon e uma de Château Lafite-Rothschild 1955 não resolvam. Um barulho no caixote e, depois de dias, finalmente uma luz branca, dessas de repartição pública, entrou em seu mundinho. Alguém a examinou por vários minutos, ela ali, exposta, só com um véu transparente cobrindo seu corpo. Quando Marilyn deixou Nova York, foi informada de que iria para o Rio de Janeiro, no Brasil. De repente, acordava nesse galpão. "Aeroporto André Franco Montoro, Alfândega, bom dia!" What?! Mistério resolvido: Marilyn estava no porão da burocracia alfandegária brasileira. Encaixotada e retida. Um fiscal da Receita Federal a fitou longamente. Observou seus olhos amendoados, suas sardas salientes, suas formas envoltas no lençol branco. E decretou: "Isto não é uma obra de arte. Não vou liberar!" What? Não é uma obra de arte?! Depois de posar para a Rolleiflex e a Nikon de Bert Stern por dias, de chegar à exaustão por se emprestar às lentes do fotógrafo e por exagerar um bocadinho nos drinks, depois de ganhar oito páginas editoriais da Vogue, um fiscal simplesmente decidia que aquilo não era arte? E isso tudo praticamente sem maquiagem e sem photoshop, meu bem. Tudo original. Francamente... Flash! Ah! Foram deliciosas aquelas horas no quarto de hotel, sempre ao som de Frank Sinatra, envolta em jóias e seda. Foram momentos de entrega plena, que geraram cansaço e vulnerabilidade - Marilyn acabou o ensaio dormindo, como um anjinho que acabara de fazer diabruras. É difícil imaginar que alguém ousaria dizer que a beleza de Marilyn não é arte. O senhor Jiro Shiota, da Receita Federal do aeroporto de Cumbica, em Guarulhos, ousou. Os documentos de Marilyn estavam com problemas nos detalhes de classificação tributária (não podiam estar isentos de impostos) e no objeto social da empresa responsável pela sua visita, que na verdade só poderia trazer material elétrico, blá blá blá. O fato é que Shiota parecia não conseguir se despedir de Marilyn. A liberação da estrela poderia ter sido feita em pouco tempo. Mas ele quis 17 dias com ela, no galpão da alfândega. Talvez tenha ficado hipnotizado com aquela sensualidade formosa, quase ingênua. Ela nem se espantou. Estava mais do que acostumada a encantar os homens. James Dougherty, Joe DiMaggio, Arthur Miller, Yves Montand, o presidente John Kennedy, todos caíram na tentação loira e, em algum ponto, que ironia, alguns a maltrataram. Agora, ser maltratada pelo sr. Shiota, aí já era demais! Foi uma correria só. Quando soube que Marilyn estava presa no galpão, Geraldo Jordão, o brasileiro que a havia convidado a vir ao Brasil, disparou telefonemas, contratou um escritório de advocacia, conseguiu liminar na Justiça, tudo para tirar a musa dali. Afinal, ela só aceitara o convite porque o lucro que sua visita geraria seria todo doado ao Instituto Rio, uma fundação comunitária que ajuda a população carente da zona oeste da cidade. Ora, Jordão não poderia deixar que essa confusão, logo na chegada ao País, diminuísse o entusiasmo e o brilho de Marilyn. Ainda mais que ela acabara de passar por Paris, pelo Museu Maillol. O Brasil não poderia decepcioná-la. Depois do cárcere no depósito de Cumbica, Marilyn estava finalmente livre! Às 8h30 do dia 10 de outubro, ela saiu do galpão. Só que o caos burocrático brasileiro não tem limites e ela se via agora na fila de carga e descarga do aeroporto, aguardando o momento de embarcar para o Rio de Janeiro. Flash! Quando viu as 2.571 imagens que Bert Stern clicara, ela ficou lisonjeada. Gostou de quase todas - menos de algumas em que sua cicatriz estava um pouco mais exposta ou seu corpo menos gracioso - e aquelas das quais ela não gostou foram marcadas com um contundente X e excluídas da seleção da Vogue. Bom, agora faltava pouco para Marilyn ver a Baía de Guanabara, o Aterro do Flamengo. Ela seria hospedada no Museu de Arte Moderna do Rio e era só viajar 430 quilômetros para atingir o seu destino final. Mas, chegando ao pátio do aeroporto de Cumbica, mais uma surpresa desagradável: por ter ficado retida tanto tempo e atrasado o cronograma de sua visita, Marilyn teria que viajar na boléia de um caminhão, feito uma bóia-fria, pela Via Dutra. Sua saga kafkiana parecia não ter fim. Ela já havia passado por tantas coisas na vida, tinha nascido de pai desconhecido, de mãe com problemas mentais, sofrido três divórcios, traições, mais baixos que altos. Já tinha sido Norma Jean, agora era vítima da instrução normativa número 35 da Receita Federal. Minha Nossa Senhora dos Alfandegários, Marilyn já tinha até morrido! Seis semanas depois do ensaio com Bert Stern, ela morreu - dormindo, em sua casa, supostamente por uma overdose de tranqüilizantes. Decerto agora ela tinha chegado ao inferno. Marilyn poderia pensar até que Deus não havia perdoado seus pecados, seu fogo , sua loirice quase ofensiva. Foram dez horas chacoalhando na boléia do caminhão até chegar ao Rio de Janeiro - ainda bem que ela estava segurada em US$ 625 mil. O que mudou sua percepção dos brasileiros foi a madrugada do dia 11 de outubro. Desencaixotaram Marilyn. Despiram a musa daquela madeira opaca, daquele isopor, daquele sufoco. Ela sentiu a maresia carioca. Gentilmente, penduraram-na nas paredes do MAM, com a delicadeza que ela merecia. Sessenta e duas versões de Marilyn tomaram conta do salão do museu e o iluminaram. Ah, sim, foi para isso que ela veio! Para ser Marilyn! E ela será Marilyn no MAM do Rio, até dia 25 de novembro, na exposição Marilyn Monroe - o Mito. A partir de 25 de janeiro, será o mito Marilyn na Galeria Estação São Paulo, na capital paulista. Quem quiser levá-la para casa, pode comprar suas fotos, por US$ 10 mil cada. Nos dois meses que terá de intervalo, voltará para o caixote, mas, desta vez, só para descansar, sob os cuidados dos produtores da exposição. Sem alfândega, sem porão. Assim poderá descansar como descansou ao fim daquele mítico ensaio fotográfico.

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