Entre a boemia e o desbunde

A Vila Madalena criou para si uma aura de tolerância e dificilmente voltará a ser um ‘colégio interno’. Resta procurar o entendimento

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Por Antonio Risério
Atualização:
Bom exemplo. Um bairro informado, com pauta de reivindicações e em dia com seus problemas Foto: EVELSON DE FREITAS/ESTADÃO

Congestionamentos e confusões que tinham acontecido durante a Copa do Mundo voltaram a se repetir, até em maior escala, no carnaval, criando problemas entre moradores e frequentadores de Vila Madalena. O que se pode fazer é tentar chegar a acordos entre adventícios festivos e residentes que querem ter mais tranquilidade. Mas ninguém vai conseguir rebobinar o filme. Cidade alguma volta atrás. E, se fosse o caso de voltar ao sossego da Vila Madalena em que morei, inícios da década de 1970, boa parte dos atuais moradores que se sentem donos do bairro seria vista como uma legião de intrusos, levando o caos a um recanto até então ordeiro e pacífico.

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O que Vila Madalena atravessa hoje é um processo que outros bairros brasileiros, em outras cidades (como o Rio e Salvador), já experimentaram. Não é comum, mas existem bairros ou segmentos de bairros que, por uma determinada conjunção de fatores, conseguem se projetar no contexto da cidade e até se insinuar, em graus variáveis de sedução e dominação, no imaginário do País. Foi o caso de Copacabana, entre as décadas de 1950-60, assim como do Porto da Barra, em Salvador, em tempos pós-tropicalistas do movimento contracultural. Quando isso acontece, o lugar deixa de ser propriedade de “nativos”, no sentido de que os demais moradores da cidade também passam a se sentir seus donos. Tanto para defendê-lo em matéria urbanística ou ambiental quanto para usá-lo como espaço de cultura e prazer, entre outras coisas.

Vamos abrir o foco. O que acontece é o seguinte. Certos segmentos físicos do espaço citadino e mesmo fronteiras urbanas podem passar a ser percebidos como lugares que dizem respeito a toda a coletividade. Além disso, alguns bairros podem ser abraçados por parcelas da população que não residem dentro de seus limites. No primeiro caso, é o que vemos com relação a centros antigos e linhas litorais, por exemplo. Hoje, o “centro histórico” de uma cidade tende a ser visto, pelo menos retoricamente, como elemento central da identidade cívica, cuja preservação e manutenção deveriam ser preocupação de todos. O mar, por sua vez, costuma aparecer não só como fronteira que assinala um limite para a expansão física da urbe naquela direção, mas também como espaço de convívio e mesmo gerador de um traço caracterológico fundamental dessa mesma urbe. É o que acontece com o Rio, onde a praia se tornou peça-chave da identidade social, cultural e visual da cidade. O Rio é um lugar que desenvolveu uma sociabilidade praieira própria - e nossa memória estética da cidade nunca será capaz de dissociá-la de seus altos morros e da extensão azul do mar.

De outra parte, como disse, alguns bairros conseguem se impor no horizonte geral do aglomerado urbano e mesmo do País, investindo-se de algum aspecto simbólico marcante, em termos histórico-culturais ou em plano comportamental - estilísticas da vida -, fazendo com que moradores de outros bairros e até de outras cidades se sintam de alguma forma vinculados ao local. Eu mesmo, morando na Praia de Itapuã, em Salvador, já fui convocado por ativistas paulistanos para assinar manifestos relativos a problemas de Vila Madalena - e assinei. Tudo isso na interessante contextura dos bairros em cidades que se foram tornando demasiado grandes e complexas para que as pessoas consigam construir em suas cabeças, por experiência própria, uma percepção global da multiplicidade de formas e conteúdos existentes nos aglomerados populacionais em que vivem. Nessa conjuntura, bairros como Vila Madalena passam a desempenhar uma espécie de função referencial em meio aos jogos rodopiantes da urbe. São lugares que vão ajudando a definir uma imagem da cidade.

É interessante. Há uns bons 40 anos (morei no bairro, pela primeira vez, entre 1974-75, numa casinha térrea de esquina, número 1 da Rua Purpurina), a Vila ainda não se mostrava como bairro boêmio, embora abrigasse já uma curiosa fauna artística. Era fácil encontrar na feira, por exemplo, parte dos Novos Baianos, notório bando de músicos e maconheiros, comendo pastéis. Mas não havia vida noturna. Quando voltei a morar lá, de 1979 a 1980, a tênue marca artístico-boêmia tinha já se aprofundado. Moradores jovens de outros bairros principiavam a frequentar o bochincho local. Até que o caldo engrossou de vez, com bares e prédios pipocando para arquivar de vez o ideário classe-mediano pobre e paroquial durante tanto tempo hegemônico no local. Hoje, Vila Madalena é um bairro decididamente boêmio, festeiro, comportamentalmente relaxado.

Na disputa por seus significados, venceu a vertente dos “desbundados”, como então se dizia. As antigas donas de casa perdidas no tempo, com seus lenços na cabeça e contas modestas em açougues e armazéns, se viram sem espaço. O cheiro de maconha se espalhou pelo ar. O bairro se encheu de pessoas ativas, liberais, “descoladas”. Bares e restaurantes explodiram em sucesso. O lugar quis se definir como recanto de “vanguarda” (estética, intelectual, comportamental), fazendo da inovação seu traço distintivo, inclusive pelo risco que se busca renovador no desenho e na dimensão de seus prédios de apartamentos, que até hoje ninguém examinou seriamente para saber mesmo o que eles podem representar em termos de linguagem arquitetural e modo de morar. 

Por outro lado, o bairro se viu tomado também por moderninhos endinheirados. E por gente que acha que é possível transformá-lo numa espécie qualquer de “comunidade” de fino trato urbano, à europeia, com horários e normas. Penso que, nessa brincadeira, esses serão os principais derrotados. Um bairro que criou para si uma aura de tolerância dificilmente conseguirá voltar a ser um colégio interno. Até porque a clareza das delimitações geográficas, “distritais”, não existe na cabeça de ninguém. Verdade que os muito pobres vivem praticamente presos, sofrendo as proibições da privação monetária, mal tendo o que comer e sem poder gastar dinheiro com ônibus ou metrô. Afora isso, todos circulam quase freneticamente pela cidade. Os limites se diluíram e, em alguns casos, foram rasurados. Sintomaticamente, houve quem decretasse, não faz muito tempo, a superação definitiva da noção de “bairro”.

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Não é isso, claro. E o que temos ali hoje, em Vila Madalena, é o que é mais importante, no dizer da já cansativamente celebrada Jane Jacobs: um bairro informado, com sua pauta de reivindicações e em dia com seus problemas. Nesse caso, repito, Vila Madalena é um exemplo. Aqui, o referencial do bairro não se dissolveu no ar. Pelo contrário. De uns anos para cá, aliás, em boa parte das grandes cidades do mundo, e talvez até por conta das marés desestabilizadoras da globalização atual, tivemos o reavivamento da ideia de bairro, visto como âmbito da familiaridade e espaço onde os cidadãos podem de fato pensar em intervir na modelagem local com certa repercussão prática, buscando alguma qualidade de vida. Como disse Kevin Lynch, em Good City Form, a política de bairro renasceu, apesar da inquestionável “dispersão espacial” dos lugares de trabalho e das conexões pessoais dos moradores.

Lynch (a citação é longa, mas relevante): “Logo após a ideia de bairro ter sido completamente demolida nos mais elevados níveis intelectuais, reapareceu com toda a força proveniente de baixo. Várias ameaças às áreas locais existentes ... originaram uma onda de resistência, organizada sobretudo ao nível do bairro. As pessoas demonstraram que, apesar de seus empregos e mesmo suas amizades não seguirem as linhas do bairro, podiam mesmo assim unir forças a esse nível quando era necessário se defenderem. Essas organizações de bairro se orientaram por questões concretas e se mostraram resistentes à mudança, em vez de serem geradoras de mudança. Desde então, tornaram-se politicamente ativas em níveis mais elevados e formais da administração. A política de bairro reapareceu”.

Isso não deixa de ser fascinante, como um capítulo de psicologia social ou de psicogeografia urbana: o bairro pode não ser indispensável à sobrevivência econômica ou essencial às relações sociais das pessoas que nele vivem, mas tem uma importância imensa como âncora comunitária em nossa estrutura mental. Temos prazer e segurança quando nos sentimos vivendo em lugares familiares, andando em ruas que conhecemos, vendo as pessoas que sempre vemos, dispondo de serviços a nossa volta e contando com a possibilidade de nos organizarmos para nos defender e reivindicar, sempre que for preciso. A realidade de uma comunidade social baseada no local de moradia é de fato relevante para nosso bem-estar.

Mas cabe uma observação ao texto de Lynch, com relação ao fato de as organizações de bairro terem aparecido ou reaparecido em cena como entidades que resistiam às mudanças, em vez de promovê-las. Era compreensível. A política de bairro renasceu justamente porque as comunidades locais se viram sob a ameaça de avanços externos desfiguradores ou claramente predatórios. Mas hoje nossas iniciativas e organizações de bairro já não se limitam a uma atuação apenas defensiva. Trazem projetos e apresentam propostas, como vemos em São Paulo e em outras cidades do País. Além disso, não nos esqueçamos de que os bairros podem querer defender seus próprios avanços. A Vila Madalena gerou mudanças ao longo de sua existência recente graças a seu próprio estilo de existir. E é natural que queira preservá-las e ao ambiente físico onde elas aconteceram.

Mas, voltando ao fuzuê carnavalesco, Vila Madalena vai ter de saber lidar com a própria imagem. Permanecer “comunidade imaginada” tolerante com os seus, mas saber lidar também com as invasões dos “bárbaros”, procurando entendimentos. Do contrário, as confusões só vão se multiplicar. É claro que há coisas que são caso de polícia - e assim devem ser tratadas. Mas nada de tentar retroceder nos avanços que houve. Não será bom para o bairro, nem para a cidade.

ANTONIO RISÉRIO É ANTROPÓLOGO, POETA E AUTOR DE A CIDADE NO BRASIL (EDITORA 34)

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