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Entre a fé e o fato

Em ‘Spotlight’, repórteres duvidaram do arcebispo. Sigamos questionando todos os cardeais que nunca usaram batina

Por Eugênio Bucci
Atualização:

O filme Spotlight – Segredos Revelados amealhou críticas deslumbradas, recebeu prêmios respeitáveis (como o de melhor ator para Michael Keaton, concedido pelo New York Film Critics Circle), está indicado para o Oscar em meia dúzia de categorias (entre elas melhor filme e melhor diretor), já deu lucro (custou US$ 20 milhões e arrecadou aproximadamente US$ 30 milhões em cinemas do mundo todo) e talvez ainda não tenha sido bem compreendido.

Os elogios enaltecem mais a história que ele conta (bem contada) e quase não comentam o impasse civilizatório que é seu tema de fundo. A história aconteceu de verdade: trata-se da saga real dos repórteres investigativos do Boston Globe, entre 2001 e 2002, para provar que a cúpula da Igreja Católica na cidade acobertou os sacerdotes que se dedicavam religiosamente a abusar de crianças de famílias pobres e desestruturadas. Em nome da clareza, o roteiro evita os rebuscamentos que dificultariam o entendimento da trama. O enredo evolui direitinho, começando pelo começo, passando pelo meio e chegando ao final sem perder o tônus jamais. Quem gosta de “filme de jornalista” (esse “gênero” extraoficial de que fazem parte Todos os Homens do Presidente, O Informante, Cidadão Kane e La Dolce Vita) admite que Spotlight adota um andamento “arroz com feijão”, bem tatibitate, mas, em sua simplicidade quase didática, é magnífico. Nasceu clássico. Não exatamente por narrar o modus faciendi de uma grande reportagem, mas por iluminar com precisão e dor uma tensão moral que é constitutiva da história da democracia moderna: a disputa entre a fé (a submissão ao sagrado) e os fatos (ou direito fundamental de conhecer os relatos dos fatos) pelo coração dos homens. O que deve presidir a organização da vida social: o discurso que fala em nome de Deus ou o conhecimento do mundo a partir das habilidades comuns dos seres humanos, segundo seus próprios critérios de discernimento racional e seus próprios parâmetros éticos? Eis o tema de fundo de Spotlight. Eis por que ele nos parece tão presente.

Spotlight já recebeu inúmeros prêmios desde que foi lançado Foto: Kerry Hayes/AP

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De janeiro de 2002 – quando o Globe publicou sua primeira grande reportagem sobre a pedofilia acobertada, trabalho pelo qual ganhou um prêmio Pulitzer – até hoje, o embate entre fanatismo e democracia apenas se intensificou. Aparece como fratura exposta nos fundamentalismos religiosos violentos, que rejeitam com fúria os princípios republicanos, mas também se expressa no sectarismo de militantes supostamente de esquerda que se julgam os únicos representantes das causas universais e, por isso, sentem-se autorizados a atropelar a lei e a moralidade pública. Outra manifestação do mesmo embate é a chamada “polarização” do debate político, tanto nos Estados Unidos (com o recrudescimento do trumpismo) como no Brasil. Esse embate faz bifurcar a vontade do cidadão.

Os repórteres do Boston Globe tinham formação católica. Graças aos cânones de sua profissão (não de sua igreja), enfrentaram o poder eclesiástico e fizeram um grande bem à sua comunidade. Viveram na carne o embate moral de que o filme trata.

A oposição entre fé e fato não é a mesma coisa que a oposição entre fé e ciência (esse “lugar-comum” da literatura de corte mais ou menos filosófico). Spotlight não lida com ciência, posto que jornalismo não é ciência. Quando comparados ao método científico, os protocolos precariamente observados pelos profissionais de imprensa não passam de uma conversa relativamente anárquica sobre as coisas do mundo, uma conversa enunciada de gente comum (os jornalistas) em interlocução com outras pessoas comuns (o público). Ocorre que os tais jornalistas exercem a única profissão que assegura na prática o atendimento do direito à informação ao cidadão da ordem democrática. Da atividade cotidiana dos jornalistas ergue-se um senso comum menos selvagem que anima a opinião pública e tem forças e conceitos para se opor a diferentes manifestações do fanatismo. Nessa perspectiva, a oposição entre fé e fato (reportado e criticado) não é menos grave nem menos moderna do que a oposição entre fé e ciência. E hoje, no mundo que aí está, dói mais.

O imaginário do nosso tempo, cindido entre os ditames da fé – seja ela uma fé travestida de militância política agnóstica (até mesmo o ateísmo pode ser uma forma de fanatismo) ou uma fé mais propriamente religiosa – e a utopia da República (ou a utopia da modernidade), pode se estilhaçar estupidamente. Contra esse risco ainda não superado, o jornalismo exercido com decência (comum), disciplina (comum) e competência (especializada) pode indicar uma esperança. É também por isso que, sem imprensa, não haverá democracia.

A propósito, se quisermos falar de imprensa, Spotlight vem nos relembrar algo de que não deveríamos nos esquecer por um dia sequer: agrupamentos transitórios de voluntários voluntariosos não fazem o jornalismo necessário; jornalismo bom precisa de redações grandes, com muitas cabeças pensantes de corpo presente (trata-se de uma atividade “presencial”, como diriam uns e outros), com equipes profissionalizadas e lideradas por chefes independentes. Sem isso, adeus modernidade.

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Não vá pensar que devemos ter fé no jornalismo. A fé serve para dar sustentação às hierarquias que resultam do invisível. O que sustenta o jornalismo é a dúvida (principalmente a dúvida sobre ele próprio). Hegel disse certa vez que a oração do homem moderno era a leitura matinal dos jornais. Ele se referia à forma (ritual), não ao conteúdo. Os repórteres do Globe duvidaram do arcebispo e prestaram seu serviço. Agora, sigamos duvidando dos cardeais que nunca usaram batina.

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