Entre o mimetismo e a metamorfose

Uma oposição que combate o que antes propugnava. Um governo que defende o que antes atacara

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Por Renato Lessa
Atualização:

Não sei se lenda ou peça de folclore político. Conta-se que décadas atrás o atual senador Marco Maciel se viu envolvido, em visita oficial à China, em um diálogo trepidante com Deng Xiaoping. Nosso senador - exemplo raro de gentileza na vida pública - teria perguntado ao líder chinês: "O que pensam vocês da Revolução Francesa?" A reposta, nessa improvável conversa, é reveladora da relatividade das distâncias temporais. O camarada Deng teria dito não haver ainda, na altura, opinião formada entre seus súditos sobre o evento, dado o caráter recente do mesmo. O que, afinal, significa um par de séculos, diante de uma história contada pela métrica dos milênios? E não é que o tempo seja apenas variável em função de diferentes experiências quanto a sua duração. Mais do que diferentes durações, o que parece ser instigante e cifrado na história do tempo é a idéia, posta pelo historiador Fernand Braudel, de que há muitos tempos no próprio tempo. Há tempos muito longos - ligados à história da natureza, aos ventos, mares, climas e a paisagens - de extração física e geológica; há tempos mais voláteis, ligados aos acontecimentos e às marcas que os humanos impõem ao mundo. Entre os mais voláteis, por comparação à fixidez das normas da natureza, há grande variedade quanto a diferentes durações: ciclos econômicos, estilos de arte, processos políticos etc. Neste domínio, o tempo vivido em um instante será sempre uma condensação de tempos mais ou menos remotos, mas sempre ativos. O fato de os observadores atuais da política - uma das dimensões mais rápidas do tempo volátil - terem se habituado a uma experiência de tempo precipitado no instante não abole essa cláusula de complexidade. Não pretendo adotar hábitos chineses e propor a suspensão do juízo a respeito do significado de qualquer evento posterior à dinastia Ming. No entanto, é estarrecedora a obsessão pela sincronia, pelo achatamento do tempo e pela opção por uma espécie de arqueologia do instante presente como forma privilegiada de elucidação dos processos políticos. É como se o acontecimento mais recente fosse a cifra para o entendimento do mundo. Entre a perspectiva chinesa e a da instantaneidade imediata do tempo, penso ser possível adotar uma perspectiva de, ao menos, média duração, ou de fazer um esforço para detectar no tempo presente o rebatimento de ordens variadas de tempos passados. É possível que algumas das metamorfoses da república brasileira devam sua elucidação à atenção a algumas de suas inércias fundamentais. No âmbito desse tempo nervoso e volátil que designamos como "política" o ano que está a terminar nos proporcionou alguns episódios vistosos. Um deles teve o sabor do evento que deu sentido ao título nobiliárquico do grande brasileiro Aparício Torelly: a Batalha de Itararé. Refiro-me à batalha campal não havida entre defensores e críticos da tese da possibilidade de reeleição indefinida do presidente da República. Os outros dois ocuparam o núcleo da agenda política do governo e do Congresso durante todo o ano de 2007. Trata-se, aqui, das batalhas pelo lugar do insigne senador Renan Calheiros na galeria dos tipos republicanos e pela capacidade de arrecadação e de utilização do orçamento por parte do Executivo (CPMF e DRU). A batalha que não houve em torno do "terceiro mandato" do presidente da República é uma excelente oportunidade para considerar os temas da desconfiança na política e o dos padrões de relacionamento entre governo e oposição. Foi tediosa a hermenêutica dos analistas, voltada para detectar nas falas presidenciais o sentido exato da sempre heterodoxa prosódia do personagem quando lidava com a questão. A oposição parece nunca ter duvidado das intenções insidiosas de continuísmo, a exemplo do paradigma democrático instalado ao norte do antigo território de Roraima. É de se reconhecer que algum alento à suspeita foi dado pelo deputado petista avulso - preocupado com o aperfeiçoamento das instituições, por certo - que pugnou por alteração constitucional a respeito da matéria. Importam menos as escaramuças imediatas do que a percepção de médio prazo a respeito do curioso mimetismo em curso no País. Não são necessárias energias cognitivas extraordinárias para reconhecer quanto da agenda e do comportamento do governo pós-2003 esteve prefigurada no governo anterior. Mais do que adotar medidas pontuais, padrões e referências estruturais para o processo governamental foram mantidos e aperfeiçoados pelos governos Lula. Dois desses instrumentos estiveram, há pouco, sob fogo inimigo de seus inventores, a CPMF e a DRU. Para além dos instrumentos legais recepcionados, o que dizer dos hábitos e das técnicas de arregimentação parlamentar e de configuração da assim chamada "base aliada"? Pois bem, um dos poucos exemplos não seguidos pelo atual presidente, com relação ao que o antecedeu, foi o da adoção da iniciativa de alterar as regras do jogo com vistas a sua permanência por mais tempo no poder. Até o momento, a alteração constitucional promovida pelo governo Fernando Henrique Cardoso indica o ex-presidente como o representante brasileiro na galeria dos estadistas latino-americanos adeptos da plasticidade institucional infinita, para finalidades próprias. A companhia é edificante, lá estão Fujimori e o "socialista" Hugo Chávez. O cenário caracterizado pela presença de uma oposição que combate hoje o que antes fazia e propugnava no governo, e de um governo que defende de forma fundamentalista o que antes foi objeto de ojeriza, parece caber por inteiro em uma das metáforas prediletas do presidente, a da metamorfose ambulante. Duvidosa homenagem a Raul Seixas, que pela imagem sugeria um processo de mutação continuada, sem resultado previsível. A aplicação ora proposta esteriliza e submete a metáfora a uma idéia de tempo cíclico: a idéia de mudança submete-se à noção de alteração de lugar. Na verdade, não se trata de metamorfose alguma, mas de inércia, a saber, a que incide sobre o padrão de relações entre governo e oposição, em vigor no país há décadas. Devemos ao historiador americano Richard Hofstadter uma das mais agudas e legíveis análises a respeito do caráter estratégico das relações governo-oposição, nas chamadas democracias representativas. Hofstadter analisa o problema em seu contexto originário, o do desenvolvimento da idéia de oposição legítima nos Estados Unidos, entre 1780 e 1840. O texto - The Idea of a Party System (University of California Press, 1969) - revela-nos como de uma cultura política republicana - desenvolvida na Revolução Americana -, fundada no consenso e na unidade do interesse público e que, por essas razões, percebia na dissensão uma porta aberta à sedição e à traição, desenvolveu-se uma teoria política e um desenho institucional para os quais a oposição regular e distinta ao governo aparece como condição necessária para o governo representativo. A passagem esteve longe de simples e pacífica, mas acabou por resultar em uma doutrina a respeito da oposição como constitucional, responsável e efetiva. A combinatória daqueles fatores acabou por configurar o que hoje se imagina ser uma adequada operação de um sistema político minimamente democrático: existência de um nexo constitucional comum a governo e oposição; a idéia de oposição como ator que se opõe a políticas de governo, mas não à legitimidade do governo constitucional. A isso se deve somar a idéia de uma oposição responsável, e não selvagem, posto que se apresenta como alternativa de governo com base no que sustenta qua oposição. A aparente metamorfose nas agendas do governo e da oposição no Brasil nada deve a Raul Seixas. Deve, na verdade, ao lamentável padrão de interações entre governo e oposição, desde o início do atual regime constitucional de 1988. Em tal padrão as idéias de oposição legítima e governo legítimo têm inscrição pálida. Há toda uma série de eventos, mais espessa do que a obsessão de tratar do instante, que se deposita ao longo do tempo. Em tal série deveria constar, como eventos mais remotos, a recusa do atual partido no governo de assinar a Constituição de 1988, com a expulsão de dissidentes, e o desprezo olímpico e iluminista que Fernando Henrique Cardoso reservava à oposição - "os que não sabem o que o Brasil quer". O padrão destrutivo indicado é compatível com o que ocorre em situações nas quais as agendas substantivas de governo e oposição são antagônicas. Situações nas quais a luta de classes se impõe como referência maior para a política, e nas quais os desenhos de política econômica e social, de ambos os campos, tendem a ser inegociáveis. Pois bem, nunca antes na história deste país o capitalismo esteve tão solidamente instalado, na vida material e nas expectativas dos brasileiros. A demanda histórica da esquerda pelo combate à desigualdade, por exemplo, cedeu lugar à busca de inclusão, cujos marcadores principais não dispensam o maior acesso ao mercado. O contributo do atual governo a essa consolidação não é diminuto. A despeito da convergência no plano substantivo, a possibilidade de fragmentação e desentendimento no campo político segue dilatada. Nesse particular, não é trivial o fato de que um dos principais chefes da oposição seja o ex-presidente da República (1994-2002). O que parece mover o comportamento oposicionista é a adoção de uma teoria que faz da oposição legítima um ator sem história, voltado exclusivamente para inviabilizar a paralisar o inimigo. A seu favor deve ser dito que a teoria não lhe é original, assim como não foi a motivação de muitos de seus senadores na derrota da CPMF, um importante instrumento de detecção de movimentos financeiros heterodoxos. E que dizer, em defesa do governo? Outros poderão fazê-lo, com maior conforto. O comportamento da base aliada, no episódio Renan Calheiros, e o da base inimiga, no episódio CPMF, são o simétrico oposto de uma mesma cultura política. Em outros termos, ao pior padrão de relações entre governo e base aliada segue-se a mais deletéria forma de relacionamento entre governo e oposição. Aqui reside, pois, uma das bases inerciais das metamorfoses da República. *Renato Lessa é professor titular de Teoria Política do Iuperj e da Universidade Federal Fluminense As hipérboles de Lula - 2007 01/01 Não basta ser pai "Mesmo sendo presidente de todos, continuarei fazendo o que faz uma mãe. Cuidarei primeiro daqueles mais fragilizados, dos que mais precisam do Estado." Trecho do discurso de posse para o segundo mandato: Lula garante que faz um governo popular e não populista, e se declara a mãe protetora dos carentes. 08/03 Vai negar? "Sexo é uma coisa que quase todo mundo gosta. É uma necessidade orgânica, uma necessidade da espécie humana e da espécie animal." O presidente defende o sexo com camisinha como forma de combater a gravidez e o avanço da aids entre as mulheres, na cerimônia em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. 20/03 Novos companheiros "Os usineiros de cana, que dez anos atrás eram tidos como bandidos do agronegócio, estão virando heróis nacionais e mundiais, porque todo mundo está de olho no álcool." Na inauguração de uma fábrica, Lula afirma que seu governo transformou os usineiros de cana-de-açúcar em heróis mundiais. Anos antes, havia chamado os mesmos usineiros de caloteiros. 27/08 É muita injustiça "Eu acho que em algum momento alguém cometeu um erro contra o caju e nós estamos aqui dizendo que não dá mais para continuar no erro. É preciso que a gente recupere o tempo perdido." O presidente participa do lançamento do Projeto Caju, iniciativa do Sesi que prevê expandir o uso da fruta, e promete reparar a grande injustiça que os brasileiros cometeram ao priorizar outros alimentos em suas refeições. 14/09 Que rei sou eu? "Seria possível a um país como a Dinamarca não ter monarquia? Seria possível à Inglaterra prescindir da rainha? Penso que não." Em excursão pelos países escandinavos, Lula se deslumbra com a monarquia e admite, em Copenhague, na Dinamarca, que até então não sabia como o sistema funcionava. Gostou do que viu. 09/11 Pulos de alegria Feliz da vida com o aumento de 50% nas reservas brasileiras de petróleo, Lula rouba a cena na 17ª Cúpula Ibero-Americana, em Santiago, no Chile. Após posar para a foto oficial do evento, salta do tablado onde estava com outros 21 chefes de Estado, causando surpresa ao rei Juan Carlos, da Espanha, e à anfitriã Michelle Bachelet. Para não ficar para trás, o presidente da Argentina, Néstor Kirchner, imita o gesto. Mas desequilibra-se e é amparado por Lula.

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