Entre o touro e o bezerro

Wall Street quase afundou, mas os pregões da Sotheby's foram ao céus com uma arte que é sinônimo de fraude

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Por Sérgio Augusto
Atualização:

A palavra esquisito não expressa com exatidão o que no início da semana aconteceu, simultaneamente, no mercado financeiro de Nova York e no mercado de arte de Londres. No primeiro, pedidos de falência e socorro, bancarrotas, naufrágios acionários; no segundo, euforia com o leilão, na Sotheby?s, de 223 obras do artista plástico britânico Damien Hirst, que em 48 horas arrecadou o equivalente a US$ 200 milhões (ou quase R$ 400 milhões, ao câmbio dos últimos dias). Na noite de terça-feira, em mais de uma redação dos dois lados do Atlântico, alguém namorou a idéia de estampar na primeira página do dia seguinte a seguinte manchete: "Hirst Up. Lehman Brothers Down". Se a casa bancária dos irmãos Lehman fez jus ao melancólico fim que a mão (dita benigna, mas perversa) do mercado lhe deu, Hirst não merecia a colossal compensação que a Sotheby?s lhe proporcionou, com a inestimável ajuda dos novos-ricos da Ásia e da Rússia. Mal das pernas até a semana passada (suas ações haviam despencado 14% no início do mês), a Sotheby?s foi salva pelo gênio marqueteiro de Hirst, o mais despudorado da espécie desde Salvador Dali. Se a crise econômica durar muito, suas ações, se é que subiram nos últimos dias, poderão se esfarelar em poucas semanas. Que influência tem a Bolsa de Valores de Nova York no mercado de arte?, perguntou-se o Wall Street Journal, já lá se vão duas décadas. A resposta, para valer, veio com a crise do final dos anos 80: os mercados desabaram, mas o de arte sobreviveu impassível. Mas só por mais um ano. Depois, tubulou. Por que agora seria diferente? Porque agora o mercado de arte tem Damien Hirst, jubilam os Pangloss da área. Mas na outra crise, Jeff Koons, notório mestre de Hirst, já estava no circuito, fazendo tudo para chamar atenção e ganhando os tubos com suas vigarices "pour épater la booboisie", e nem assim o horizonte ficou cor-de-rosa por mais de um ano. Ok, Hirst é bem mais épatant (ou seria épateur?) que o ex-marido da Cicciolina, a Sotheby?s fica bem longe de Wall Street, mas, até porque essa distância é irrelevante, recomenda-se: barbas de molho. Os curadores de museus já puseram as suas de molho faz tempo. O Museu de Detroit abriu o jogo na quinta-feira: não tem mais como se manter. Outros também andam a correr o pires inutilmente. Simples: seus habituais e potenciais filantropos ou estão em pânico com a atual crise econômica ou pedindo falência. As 3.500 obras de arte contemporânea que pertencem ao acervo do Lehman Brothers, desveladamente iniciado por Robert Lehman, mecenas do Metropolitan, o grande museu de Nova York, perigam ir a leilão para cobrir as dívidas do grupo. Restam os russos e os asiáticos. Até os árabes e japoneses sumiram. Hoje à noite, às 18h30 (horário local), o Channel 4 da Inglaterra transmite o documentário The Mona Lisa Curse (A maldição de Mona Lisa), escrito e apresentado pelo australiano Robert Hughes, o crítico de arte da revista Time, certamente o mais lido do mundo. Oportuníssimo, seu tema é a espetacularização da criação artística e a conseqüente monopolização do mercado de arte por mercenários e embusteiros. A importância de qualquer obra de arte passou a ser medida, única e exclusivamente, por seu valor de mercado, que, por sua vez, é manipulado por espertalhões novidadeiros cuja clientela, com as exceções de praxe, tudo vê como meras commodities. "É a arte reduzida à categoria de investimento", critica Hughes. "Em vez de tornar-se um bem comum da humanidade, como um livro, por exemplo, virou uma propriedade particular de quem puder pagar por esse privilégio. Como pode um museu concorrer com esses zilionários russos que começaram a ?comprar arte? há três minutos, mas trazem no bolso o equivalente ao PIB da Geórgia?" Essa irreversível depravação da arte pelo comercialismo teria sido estimulada em grande parte, segundo Hughes, pela vinda a Nova York, em 1963, da Mona Lisa de Da Vinci, cuja exibição atraiu multidões dignas de um blockbuster. O sucesso de Hirst faz parte da "maldição da Gioconda"- se não for seu mais exitoso e deletério efeito colateral. Hughes tornou pública sua ojeriza a Hirst e vigaristas do mesmo calibre em 2004, no jantar anual da Royal Academy of Art, em Londres, quando comparou suas obras ("absurdas, fáceis") e seu irrefreável espírito marqueteiro ao que Rembrandt, Velasquez e Goya nos legaram, como artistas e divulgadores de suas criações. Na mesma palestra, debochou daquele tubarão imerso em formol e vendido por US$ 12 milhões ao publicitário Charles Saatchi ("É o organismo marítimo mais superestimado do mundo"), sem, contudo, deixar de reconhecer que Hirst é um homem de palavra. No início da carreira, ele jurou que um dia faria "uma obra de merda" e "conseguiria vendê-la por um dinheirão". No sentido figurado, já cumpriu a promessa. Talvez só um psicanalista explique o porquê de sua fixação por picles de animais, por tubarões, vacas e bezerros em formol, por moscas, borboletas, caveiras e outras naturezas literalmente mortas, macabras. Iconoclastia? "O iconoclasta é um idealista, e Hirst não tem ideal, só autocomplacência capitalista", fulminou Hughes, que, diga-se, não é uma voz solitária na condenação ao artista inglês. Poucos artistas contemporâneos têm sido tão açoitados pela crítica quanto Hirst. Alheio a tudo e, agora, também à crise econômica a sua volta, não tem mais onde pôr dinheiro. Seu recorde, no leilão da Sotheby?s, foi um bezerrão de 20 toneladas, com cascos e chifres de ouro de 18 quilates (claro que imerso em formol), arrematado por US$ 18,6 milhões. A escolha do Bezerro de Ouro bíblico, símbolo máximo da idolatria injustificada e também fonte de inspiração de Poussin (está na National Gallery, em Washington, comparem), Tintoretto (numa igreja em Veneza, idem) e Lucas van Leyden (no Rijksmuseum, em Amsterdam, idem), se não foi um ato falho, foi uma gozação em seu futuro comprador - um russo cautelosamente mantido no anonimato. Ou, quem sabe, uma brincadeira antecipada com o touro de Wall Street. Que ainda não se livrou de vez de entrar no formol.

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