Entrevistas de Vladimir Putin com Oliver Stone são compiladas em livro

Presidente russo fala sobre interferência na eleição de Trump, política externa e guerra nuclear

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Por Flávio Ricardo Vassoler
Atualização:

No livro The Putin Interviews, ainda inédito no Brasil, o cineasta estadunidense Oliver Stone entrevista o presidente russo Vladimir Putin entre 2015, quando a crise ucraniana ainda pulsa, e 2017, após a eleição de Donald Trump como presidente dos EUA.

O presidente russo Vladimir Putin e o cineasta Oliver Stone 

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Com uma aura de força, Putin gosta de duelos. Assim, Stone faz menção a Barack Obama, para quem Putin ainda vê o mundo com a voracidade imperialista do século 19. Diante da pergunta “Por que a Rússia anexou a Crimeia?”, Putin redargue: “Nós não anexamos a Crimeia. Os cidadãos da Crimeia, por meio de um referendo, decidiram se unir à Rússia.” (Stone não o pressiona para que Putin explique por que o dito referendo foi feito ao arrepio da temporalidade determinada pelas leis e tratados internacionais.)

Que dizer da influência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) sobre os países próximos à Rússia – Países Bálticos, Geórgia, Ucrânia (antigas repúblicas soviéticas)? Putin chicoteia: “Hoje, a Otan é um instrumento da política externa dos EUA. Ele não tem aliados, apenas vassalos. Membros da Otan dificilmente resistem às pressões dos EUA. Assim, quaisquer sistemas de armamentos e bases militares podem ser instalados nesses países. E o que nós devemos fazer? Ora, nós temos que apontar nossos mísseis contra as instalações que nos ameaçam. Assim, a situação é cada vez mais tensa.”

Crítico ferrenho da política externa intervencionista dos EUA, Stone referenda as reações (supostamente) defensivas da Rússia. No entanto, ele pergunta ao presidente se, agindo assim, a Rússia não estaria se prejudicando aos olhos da comunidade internacional. Ao que o nacionalista Vladimir Putin, unilateral como os EUA, responde: “Você acha que nosso objetivo é provar algo para alguém? Nosso objetivo é fortalecer o nosso país.”Quando o líder de uma potência nuclear afirma que o objetivo essencial de seu país é o autofortalecimento, Stone projeta o cenário iminente de uma guerra. Nesse caso, os EUA seriam dominantes? Putin é taxativo: “Não.” Mas a Rússia sobreviveria a uma guerra nuclear? “Ninguém sobreviveria a tal conflito”, sentencia Putin.

Polêmico, o presidente russo afirmou certa vez que, para além do holocausto judaico e das bombas atômicas lançadas sobre o Japão, a maior tragédia do século 20 fora o colapso da União Soviética. A despeito de Putin emendar que se referira à tragédia dos milhões de cidadãos russos que, com o fim da URSS, se tornaram, do dia para a noite, estrangeiros em países crescentemente hostis – eis o caso, por exemplo, dos russos étnicos na Geórgia e na Ucrânia –, não faltou quem interpretasse o atual presidente e ex-agente do temível KGB (antigo serviço secreto da URSS) como um nostálgico do poderio soviético. Afinal, desde sua ascensão ao poder, em 1999, Putin vem fortalecendo a autoestima russa, de modo a reconfigurar o país como um global player a ser novamente respeitado (e temido). Tornam-se inteligíveis, então, suas intervenções na Geórgia, na Ucrânia, na Síria e nas negociações envolvendo a crise na Coreia do Norte.

O fortalecimento da autoestima russa sob Putin também implica um entrelaçamento crescente (e anacrônico) entre Estado e Igreja Ortodoxa. (Quando Napoleão Bonaparte soube que o czar Alexandre I era, ao mesmo tempo, monarca e líder da Igreja, o francês teria exclamado ao russo: “Ora, mas que conveniente!”) Diante de um Estado cada vez menos laico, Stone questiona Putin sobre a homofobia das leis russas que proíbem as ditas “propagandas homossexuais” para menores. Ao que o antiliberal Vladimir Putin afirma que a defesa da família tradicional não implica homofobia. Ora, então por que criminalizar veiculações plurais e democráticas em nome da sagrada família? – eis a tréplica que Stone não emenda. 

O cineasta, então, interpela Putin, sem provas cabais, a respeito de um tema que virou consenso entre a grande mídia dos EUA: “Por que a Rússia interferiu, por meio de hackers, na campanha presidencial que levou Donald Trump ao poder?” A réplica de Putin calça luvas de pelica: “À diferença de muitos de nossos parceiros mundo afora, nós nunca interferimos nos assuntos domésticos de outros países.” (Lembremo-nos de que a ex-presidente do Brasil Dilma Rousseff foi espionada pela Agência Nacional de Segurança dos EUA.) 

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Por fim, após a vitória de Trump, haveria alguma esperança para as estremecidas relações entre EUA e Rússia? Ora, Putin recorda que os dois países foram aliados nas duas guerras mundiais. Ademais, há agendas urgentes e comuns: a luta contra o terrorismo e a degradação ambiental, que, enfatiza o presidente, é a verdadeira ameaça para a humanidade. “Quanto à esperança”, prossegue Putin, “ela sempre persiste – até que nos levem para o cemitério”.

– Uau! Isso é muito russo, isso é puro Dostoievski! – arremata Stone diante do “neoczar” Vladimir Putin, casado com o poder até que a morte os separe. 

*Flávio Ricardo Vassoler é doutor em letras pela USP, com estágio doutoral na Northwestern University (EUA)

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