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Epidemia de epidemias

Para Patrick Zylberman, doutor em História da Saúde, a “memória surda das epidemias” aflora a cada novo sinal de alerta de risco de contaminação em massa. Só assim para explicar por que uma concessionária de carros em São Paulo oferece vacinas

Por Andrei Netto CORRESPONDENTE e PARIS
Atualização:

Não bastasse a epidemia de escândalos que assola o País, a moral do brasileiro vem sendo enxovalhada ao longo dos últimos meses por outras duas epidemias que abalaram não apenas a saúde de suas vítimas, mas também a coesão da sociedade. Histórias como a do padre que suspendeu o aperto de mão e a hóstia na boca são só um exemplo rocambolesco dos sintomas de medo irracional e de desagregação social em curso no Brasil, onde zika e H1N1 deixam um rastro de infelizes fatos concretos e receios por vezes injustificados e exagerados.

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Portar uma máscara cirúrgica inútil é um sinal de individualismo e de rejeição do outro, tanto quanto oferecer vacinas em uma concessionária é um indício de elitismo e de menosprezo pelo pobre. Mas o Brasil pode se consolar: os indicativos de terror e de mesquinharia não são uma particularidade verde-amarela, mas fartos na história de toda a humanidade quando o assunto são epidemias. Afinal, a memória de nossas sociedades ainda carrega traços de tragédias como a gripe espanhola de 1918 e 1919, que deixou mais de 50 milhões de mortos em todo o mundo. Esses resquícios Patrick Zylberman, doutor em história da Saúde Pública e professor da École des Hautes Etudes en Santé Publique (EHHESP), da Université Sorbonne – Paris Cité, da França, chama de “memória surda das epidemias”.

Em entrevista ao Estado, Zylberman lembra que, entre as reações típicas, espontâneas ou não, de sociedades ameaçadas por epidemias estão a fuga, os movimentos de pânico, o aumento vertiginoso do preconceito violento, as teorias conspiratórias, a xenofobia e a demofobia – ou seja, um pouco de tudo que pode ser encontrado no Brasil da zika e do H1N1.

Para o historiador, parte do medo se justifica. As instituições internacionais e os governos, os laboratórios farmacêuticos e a medicina em geral estão distantes de terem identificado todas as ameaças à saúde que pairam sobre a existência humana. Zika e sua súbita e ainda incompreendida mutação em vírus preocupante é o mais recente exemplo, de uma lista que inclui o HIV e a aids há pouco mais de 30 anos. É fato que a humanidade está em meio a uma aceleração dos eventos epidêmicos – e o medo que os acompanha, é claro, segue o ritmo. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Há dois anos, o senhor afirmou que nós, a humanidade, temos “temores ancestrais de grandes epidemias”. Como se explica esse medo?

O medo, o terror acompanha a memória surda das epidemias. Não esqueçamos que a peste negra talvez tenha ceifado em alguns anos 50 milhões de vidas em uma Europa que, em meados do século 14, tinha 80 milhões de habitantes. Esse gostinho de cataclismo sobreviveu em nossa cultura até recentemente. Nós poderíamos citar a devastação pela cólera, que a América do Sul enfrentou mais uma vez em 1991, ou ainda a poliomielite, que gerou pânico, como em Nova York em 1916, com 27 mil casos e 6 mil mortes. O historiador grego Tucídides foi o primeiro a descrever a desintegração social causada por uma epidemia violenta: o esfacelamento das autoridades, a desorganização brutal das estruturas sociais e mentais, o rebaixamento do Estado, uma sociedade humana no limite de suas forças. De uma precisão fantástica, sua pintura nunca foi superada. A “peste” de Atenas, em 430 e em 427-26, não foi apenas uma crise sanitária, mas foi também uma crise moral de grande amplitude. A infecção não destrói apenas o corpo – ela também destrói as instituições, os costumes, uma sociedade. A destruição é maciça, com desorganização maciça: esse é o duplo resultado de uma crise epidêmica. Tucídides menciona ainda a impiedade, a humanidade sem lei nem regra – a anomia. Símbolo desse desmoronamento da civilização, os rituais funerários são pisoteados. Lucrécio, Boccace e, mais perto de nós, Thomas Mann, Artaud, Giono, Camus, todos usaram este topos – essa imagem quintessencial da epidemia.

Desde a epidemia de gripe espanhola, em 1918-19, nossos sistemas de saúde foram aperfeiçoados para detectar melhor um vírus e uma epidemia. Se, de um lado conhecemos mais vírus, de outro temos mais controle sobre eles. É razoável ter medo nos nossos dias?

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Mas ainda nós estamos muito longe de conhecer melhor os agentes microbianos presentes em nosso ambiente externo e interno. E os que nós conhecemos – algumas centenas – estão realmente sob controle? Há razões para duvidar. O zika, por exemplo, é uma completa surpresa. Até 2013, era apenas um vírus anedótico. Sua presença foi verificada na Polinésia Francesa, mas havia pouquíssimos casos de síndrome de Guillain-Barré, uma afecção neurológica causada, nós sabemos hoje, pelo vírus. De repente, o zika se torna preocupante. Qual é a razão de tal evolução? Nós ainda não sabemos. Nossos sistemas de supervisão de riscos epidêmicos foram melhorados nos últimos tempos, é verdade, mas ainda estão longe da perfeição, até porque estão muito concentrados no Norte e muito ausentes no Sul. É razoável ter medo? O medo pode existir, na verdade, quando ele engendra a prudência, fruto da tomada de consciência da necessidade de se preparar para lutar contra os riscos epidêmicos. Ele não é razoável, por outro lado, se apenas aumenta nossa tendência espontânea de considerar antes de mais nada os piores cenários.

Nos últimos anos, temos vivido eventos epidêmicos frequentes: SARS em 2003, a gripe pandêmica H1N1 em 2009, ebola em 2013-2015, para citar exemplos. Há um aumento dos eventos epidêmicos no mundo? Estamos ameaçados?

A humanidade coabita com os vírus há milhares de anos. Ao sair da 2ª Guerra Mundial, os meios de saúde pública foram tomados de um otimismo pouco justificado. Em 1967, por exemplo, o diretor-geral de Saúde dos Estados Unidos declarou que “o capítulo das epidemias infecciosas estava acabado”. Nós tínhamos então a convicção de ter chegado ao fim das epidemias, ao menos no mundo desenvolvido. Em 1980, a varíola foi erradicada. Mas, em 1981, o vírus da aids apareceu, e o otimismo cedeu lugar a uma profunda melancolia. A complacência foi sucedida por uma preocupação às vezes exagerada, tão exagerada que pode impedir uma avaliação objetiva do perigo. A epidemia do vírus ebola que assolou a África Ocidental em 2013-2015 é um exemplo trágico dessa visão deformada das coisas.

A comunicação de uma epidemia é um tema delicado para as autoridades nacionais e mundiais. Qual é, na sua avaliação, a boa forma de falar ao público sobre o assunto?

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Eu sou obrigado a reconhecer que, nesse assunto, os avanços que fizemos foram muito limitados. Há bons exemplos, como o Reino Unido, cujas campanhas de prevenção são com frequência muito criativas – e lembro por exemplo da gripe pandêmica de 2009. A eficiência dessas campanhas está comprovada? É preciso se certificar disso. E, além dos bons exemplos, há os muito ruins. A França e a Organização Mundial da Saúde (OMS) são dois exemplos de primeira grandeza. Paralisadas pelo risco político, as autoridades sanitárias francesas e a direção-geral da OMS não sabem como gerenciar a comunicação de uma crise sanitária. A diretora da OMS se esforça hoje para aplicar as recomendações do Relatório Intermediário que experts lhe entregaram em julho passado a fim de tirar as lições da crise do ebola. Por que criticá-la? Que Margaret Chan desaconselhe às mulheres grávidas de visitarem zonas infectadas, não há nada a dizer: a OMS está cumprindo perfeitamente o seu papel. Mas é surpreendente, entretanto, que seis dias após sua visita ao Brasil suas declarações encorajem o mundo inteiro a ir aos Jogos Olímpicos – sob pressão do governo brasileiro, não há dúvida. A diretora-geral da OMS está autorizada a emitir um aviso sobre o risco de viagens para as gestantes, que correm alto risco de complicações graves após a contaminação por vírus zika. Não é inconsequente dizer o contrário? É uma contradição que pode confundir as pessoas.

No Brasil, fomos confrontados a duas epidemias simultâneas: a de zika e agora a de H1N1. Há pessoas que usam máscaras cirúrgicas na rua ou em lugares fechados, houve um padre que pediu a seus fiéis que não deem as mãos durante uma missa, ou ainda uma concessionária de carros que ofereceu aos clientes vacinas contra o H1N1. Não estamos à beira de uma nova epidemia: a de fobia?

As reações a uma epidemia são mesmo muito diferentes em cada sociedade. Em 1993, em Surat, a 200 quilômetros ao norte de Bombay, um milhão de habitantes, de um total de 2,5 milhões, fugiu quando a peste foi anunciada. A fuga coletiva, na maior parte das vezes, mas também individual é uma prática multissecular e um divisor de águas nas sociedades sob ameaça de epidemia. Outro exemplo: os movimentos de pânico, como o dos Flagelantes, do século 14, durante a peste negra – movimentos, aliás, organizados e que não tinham nada de explosão de emoções descontroladas. Outra reação típica: o aumento vertiginoso do preconceito violento. Aconteceu contra os pobres durante o Renascimento, por causa da peste e do tifo; contra os irlandeses no século 19, por causa da cólera; mais uma vez contra os pobres no século 19, por causa da tuberculose; contra os 4H (homossexuais, haitianos, hemofílicos e viciados em heroína) nos anos 1980, por causa do HIV e da aids. E, claro, aconteceu contra os judeus quando da primeira “onda” da peste negra, entre 1347 e 1349. Em 1832, nos bairros operários das grandes cidades, a população estava convencida de que a cólera era propagada pelo governo com o objetivo de exterminá-la. A mesma ideia aparece entre os moradores do vilarejo de Norfolk, no Reino Unido, que, nos anos 1850, viram na vacina contra a varíola, tornada obrigatória por lei para as crianças, um complô das autoridades a fim de matar todas as crianças de menos de 5 anos. A mesma ideia se difundiu como um rastro de pólvora nos guetos urbanos dos Estados unidos nos anos 1980-90, no momento da epidemia de HIV/aids. E agora estamos diante, mais uma vez, dessa crença doentia pela internet. Em 2009, podia-se ler na internet que o vírus H1N1 era criado pelos laboratórios diabólicos da ONU e da OMS, cujos objetivos secretos eram exterminar uma parte da população do planeta. Claro que esses fantasmas têm um custo. O cantão de Genebra conheceu vários “complôs”, em 1530 e mais uma vez em 1545, quando os supostos “portadores da peste” – trabalhadores estrangeiros temporários empregados em funções simples para auxiliar os doentes da peste – eram perseguidos nos tribunais e acusados de ter difundido a infecção. É preciso resistir à tentação de menosprezar esses clichês do obscurantismo. Em longo termo, essas “teorias conspiratórias” irrompem e parecem inerentes à própria epidemia. Fica claro que a fobia é uma hidra de cem cabeças – e nem todas são tão atraentes como a de uma concessionária.

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Loja não cobrou pela imunização Foto: SERGIO CASTRO/ESTADAO

Na sua opinião, as redes sociais desempenham um papel positivo ou negativo quando de eventos epidêmicos? No momento em que alguns de nós têm muito medo, não estamos estimulando o medo e o preconceito, talvez até o isolamento de nossos filhos, de nossos familiares ou de nós mesmos?

Crenças sofrem a influência do debate público e da pressão midiática. Então, eu pergunto, em que medida, não a percepção do risco, mas as crenças foram influenciadas pelos blogueiros? Na França, o impacto dos antivacinação na opinião pública nunca foi medido. Um primeiro teste muito promissor foi feito nos países anglófonos – veja o estudo Chew et Eysenbach, PLoS ONE, de 5/11/2010. Entre mais de 2 milhões de tweets em língua inglesa – mais de 50% deles de americanos – que tinham as hashtags “H1N1” ou “gripe suína” entre 1º de maio e 31 de dezembro de 2009, ou seja, em média 600 tweets por dia, 5.395 foram submetidos a uma análise de conteúdo. Cerca de 13% deles continham brincadeiras e sarcasmos, 12% demonstravam inquietude, 10% faziam perguntas, 4,5% apenas disseminavam “desinformação” – definida por palavras-chave como conspiração, toxina ou autismo. O peso relativo da “desinformação” no fluxo de tweets analisados parece relativamente modesto, ainda que sua proporção no tempo tenha variado muito, de 2% a 9%, entre junho e agosto, com uma parte igual a 4% e 6% entre o fim de agosto e o fim de novembro, ou seja durante a campanha de vacinação. Se a desinformação está longe de estar ausente do fluxo emitido pelas redes sociais durante a epidemia de 2009, nós vemos que também não é o tsunami que alguns descrevem. Mais importante do que isso, e muito mais inquietante, foi a raridade das remissões às fontes oficiais, como Centros para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC) ou a OMS – só 1,5% dos tweets continham links para essas instituições. O que está em dúvida, nesse aspecto, é a pouca confiança das pessoas nas autoridades sanitárias.