Era da vertigem

'Em dias de muitas imagens, reaprender a apreciar uma obra de arte estática é o único remédio possível', diz ensaista

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Por Vitor Hugo Brandalise
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Nesta última vinda a São Paulo, Camille Paglia encontrou as pessoas mais agitadas, mais apressadas, mais afobadas. Um sintoma de que a cidade, como outros centros por onde a ensaísta e crítica cultural americana tem circulado, faz parte de um ciclo que está levando, na opinião dela, ao “suicídio do Ocidente” e fazendo com que “os jovens tenham aspirações do tamanho das telas de seus celulares”. Para evitar isso, Camille defende um respiro. Logo ela, essa mulher que fala rápido e sem parar, essa expoente do combativo “feminismo de amazonas” e da ideia de que “as mulheres têm de parar de choramingar”, logo ela pedindo um arrego? “As pessoas não imaginam, mas, por dentro, sou calminha.”

Camille Paglia Foto: Glittering Images

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Por fora, não parece mesmo. Camille mantém intacta a verve que a tornou conhecida desde o lançamento de Personas Sexuais (Companhia das Letras), de 1992, em que afirma que a igualdade entre mulheres e homens é impossível e indesejável. Sentada sob o ar-condicionado (um pedido dela, por causa do calor fora de época) em um bar de hotel da região da Avenida Paulista, a professora da Universidade das Artes, na Pensilvânia, falou do “carreirismo galopante que acomete as classes médias”, do “desastre que foi Hillary Clinton como secretária de Estado”, do fato de “darmos mais importância à bunda de Kim Kardashian do que às brutalidades do Estado Islâmico”, das semelhanças que vê entre a presidente Dilma Rousseff e Angela Merkel. E haviam se passado apenas 25 minutos de uma conversa que durou uma hora e vinte.

O respiro, fundamental para sobrevivermos ao que ela chama de “era da vertigem”, só pode vir da arte. “Em dias em que as imagens piscam nos computadores, reaprender a apreciar uma obra de arte estática é o único remédio possível”, disse Camille, que esteve no Brasil essa semana (é sua nona visita) para participar do evento Fronteiras do Pensamento, e concedeu esta entrevista ao Aliás.

A senhora critica o atual regime de trabalho. Quais problemas aponta? Por um lado, o sistema moderno de carreiras aumentou o padrão de vida de todos. Mas as pessoas ficaram hipnotizadas por essa corrida maluca, esse carreirismo galopante das classes médias e médias altas, que são um fenômeno global. Quanto mais educadas, mais as pessoas se inspiram a entrar nesse sistema, mas não se dão conta de que demanda muito de homens e mulheres. As mulheres erraram o alvo nos anos 60 quando quiseram participar disso e acharam que ter igualdade no escritório seria o ápice da felicidade. Em todos os lugares aonde vou, noto que as mulheres de classe média alta estão infelizes. A dificuldade é reconciliar o poder que têm no espaço de trabalho com a relação com os homens em casa. Ao longo dos séculos, houve separação nas relações profissionais: eles caçando, elas em casa. Aí, repentinamente, estão juntos e as mulheres descobrem, veja só!, que não podem ter com os maridos a mesma conversa que têm com as amigas e amigos gays. Parem de tentar transformar homens em mulheres! Mulheres falam entre elas e têm valores similares. Homens gays falam parecido, mas não os heterossexuais. Elas não percebem isso e a resposta automática a toda infelicidade é: homens precisam mudar e nós precisamos do governo para forçar isso. Não! Precisamos reformar o regime de trabalho desumanizante. As mulheres não perceberam que esse sistema não é nem para elas nem para eles. A felicidade humana deriva de coisas de fora dessa máquina.

Qual a consequência dessa valorização extrema do trabalho, para homens e mulheres? A essência de nossa identidade se transforma no que fazemos no trabalho. Mas é correto nos identificarmos pelo que é tido como sucesso? Discutimos muito essa questão nos anos 60. As pessoas se interessavam por realidades mais elevadas, a vida, a morte, o sentido do universo. Hoje, quem se pergunta isso? Quando você coloca todo o significado na sua carreira, está fadado à superficialidade e ao vazio. Há poucos lugares no topo de cada carreira. O que acontece é que, de repente, o corpo enfraquece e o que você sempre quis não tem mais tanto valor quanto sua saúde e sua família. Falta essa perspectiva a esse sistema, mas, infelizmente, as mulheres entraram de cabeça nele. Por isso digo que as que optaram por uma família numerosa são mais felizes. Estamos nos dirigindo para a ruína espiritual quando essas mulheres, que não queriam casar nem ter filhos, percebem o vazio do sucesso na carreira que pensavam ser o ponto mais alto do universo. Elas se sentem catastroficamente sozinhas. Já os homens... São os burros de carga da história, trabalham, trabalham. Também não sabem como sair dessa roda. Mas é por isso que odeio esse feminismo antimasculino. Homens trabalharam desde sempre para as mulheres. Para suas esposas e seus filhos.

As pessoas estão percebendo esses problemas, como mostram os movimentos ‘slow’? São insuficientes. As pessoas estão iludidas sobre a continuidade desse sistema. Toda vez que uma civilização se torna complexa, as pessoas viram preguiçosas, acreditam que a riqueza será eterna. Então baixam a guarda. Esqueceram o que é o padrão de vida humana. A sabedoria, o conhecimento acumulado nos ensinou que esse não é o caminho, que são apenas objetos cintilantes, falsos brilhantes que nos distraem, e que as respostas estão dentro de nós. Sinto que a classe média próspera está numa bolha em relação à seriedade da instabilidade internacional, do terrorismo. Estamos caminhando para a morte, ou melhor, para o suicídio da civilização ocidental. Medida disso é que estamos mais preocupados com a mudança de sexo de Bruce Jenner e com a bunda da Kim Kardashian do que com as brutalidades do Estado Islâmico.

Qual o papel da cultura de consumo nesses perigos que a senhora aponta? Faz parte do mecanismo de alienação. Tornou-se problema grande entre os jovens. Como professora, vejo isso em classe. Tanto tempo na realidade virtual está minando a capacidade de verbalizar sentimentos, para além das coisas truncadas que mandam uns para os outros. Quando abaixa a cabeça e fica ali escrevendo, não mostra nada além daquilo. E assim perdem a habilidade de ler as expressões dos outros, intuir o que estão pensando. Isso é ruim, inclusive quando falamos das garotas ingênuas que chegam na universidade, saem com um rapaz e são incapazes de ler as emoções dele. E vice-versa. Essa é a receita para desastres no jogo do sexo.

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Em seu último livro, a senhora fala sobre o impacto da tecnologia na apreciação das artes hoje. Em dias em que as pessoas assistem a filmes em aparelhos portáteis, os elementos visuais são afetados, por causa do tamanho das telas. E as únicas coisas que se traduzem bem nesse formato são estímulos piscantes e numerosos que se sucedem. Você se entretém com o movimento. Antigamente, a composição fotográfica dos filmes na tela grande era baseada em pinturas. Havia iluminação por múltiplos ângulos, os atores pareciam esculturais. Essa arte está desaparecendo. Cresci em um período de telas grandes, vi Ben-Hur, Os Dez Mandamentos no cinema. Penso grande, como reflexo dessa época. E nossos pobres jovens, com seus smartphones, infelizmente vão pensar pequeno.

A senhora costuma dizer que a arte deve voltar para o centro da vida. Como isso pode nos ajudar? A arte está perdendo sua centralidade cultural. Era nela que as pessoas trabalhavam questões difíceis. E agora não queremos dificuldades, nem nos sentir deprimidos. É um período em que as pessoas, pelo menos nos EUA, não querem ler Dostoiévski, Kafka, porque apresentam reflexões sombrias. Precisamos reaprender a ver para sobreviver nessa era da vertigem. É como escrevi no meu livro Imagens Cintilantes (Apicuri). No meio dessa poluição visual, é essencial reencontrar a estabilidade. As crianças, principalmente, merecem ser salvas do redemoinho de imagens que fazem a realidade, com suas tarefas e preocupações, parecer coisa fútil e menor. A única maneira de oferecer aos olhos essa estabilidade é pela contemplação da arte. Vai ajudar a nos salvar da lógica que descrevi. Ao reaprender a apreciar o belo, a chance de se encantar por brilhantes falsos é menor. Por isso proponho colocar o ensino das artes no centro dos currículos escolares desde cedo, com proposta multicultural, obras de todo o mundo. 

A senhora escreve sobre mulheres na política. Quanto de machismo há nas críticas a uma mulher presidente, como vimos há pouco tempo no Brasil? Isso também acontece nos EUA. Indica juvenilidade do homem que faz isso. Cada vez que um homem é incapaz de rejeitar as ideias de uma mulher sem se referir ao seu gênero, ele mostra que tem problemas, que se sentiu esmagado pelo poder feminino. Sempre digo isso: o homem que insulta uma mulher pelo seu gênero tem problemas com a mãe dele. E atacar outra mulher é o seu jeito de se livrar da mãe. Eu vejo isso e digo “você está mostrando a si próprio que ainda é um menino”. Mas muitas mulheres não conseguem e se retiram. Por isso há tão poucas na política. Não percebem que, para homens e mulheres, abusos são mecanismos de teste. Se você quer ser uma pessoa cativante no debate, esteja preparado para isso. Deve fortalecê-la, e não machucar seus sentimentos.

Qual sua opinião sobre a possível candidatura de Hillary Clinton à presidência dos EUA? Não acho que Hillary vai passar pelas primárias. Ela está caindo nas pesquisas porque não engana a ninguém. Foi um desastre como secretária de Estado, fez uma incursão à Líbia que desestabilizou todo o norte da África. Ela tem responsabilidade pelo contrabando de armas à Síria, o que desestabilizou o país e, mais adiante, causou a crise migratória na Europa. E Hillary permanece impassível. Não é uma pessoa pública, mas sim a esposa de um político. Denota falsidade. A persona pública de uma mulher, assim como a de um homem, deve ser real. Escrevi um artigo na Time em que cito a postura de Angela Merkel como exemplo. Na aparência, tenho uma ideia próxima à da presidente de vocês. Merkel e Dilma dão a impressão de serem mulheres reais, que apreciam a vida, e não tentam parecer puritanas sarcásticas que não sabem viver. Parecem pessoas de verdade.

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