Escrita em francês, 'Don Carlos' de Verdi retorna ao idioma após 31 anos

Remontagem em Paris evidencia diferenças de interpretação entre italiano e francês

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Por Zachary Woolfe
Atualização:

PARIS - Que diferença faz uma letra.

Uma das maiores obras de Giuseppe Verdi é mais conhecida em sua tradução italiana, como Don Carlo. Mas, originalmente, ele escreveu a música da ópera para um libreto francês, Don Carlos. Embora a música permaneça a mesma, sente-se que o estado de espírito foi sutil e completamente alterado.

Montagem de 'Don Carlo' em Paris Foto: Agathe Poupene/Paris Opera Ballet

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Em um angustiado dueto com Carlos – que foi seu primeiro noivo e agora (suspiros!) é seu enteado – Elisabeth, a infeliz rainha da Espanha, implora para que ele reconheça que seu coração não é indiferente, para que entenda seu silêncio. Em italiano, a palavra é “silenzio”, coroado com um forte e amargo “oh”. Em francês, é silence, com um suave “eh” no final.

O idioma se torna emoção na voz de uma artista como a soprano Sonya Yoncheva, que interpreta Elisabeth pela primeira vez, em uma nova produção sóbria e estrelada de Don Carlos, a qual estreou na Opéra Bastille na terça-feira. Ao não se debruçar sobre aquela quase sílaba ao final de ‘silence’, Yoncheva criou uma breve aura de melancolia, um sopro de nuvens escuras.

O tenor Jonas Kaufmann, que chegara a interpretar Carlos apenas em italiano, encontrou em francês um paralelo para seu tom abafado. E, na terça-feira, o francês pareceu, aqui e ali, mais reflexivo que o italiano na temperatura emocional da obra: quando o brutal e atormentado rei Felipe II (Ildar Abdrazakov) suspira pela esposa que não o ama, o verso “Ella giammai m’amò” (“Ela jamais me amou”) é mais declamatório – diga em voz alta – que o velado e introspectivo “Elle ne m’aime pas”.

Em italiano, é um momento público, mesmo sendo um solilóquio. Em francês, é o murmúrio de uma alma torturada.

O retorno de Don Carlos à Ópera de Paris em sua língua original, pela primeira vez desde 1986, traz uma obra-prima de volta à casa. Verdi terminou a música em 1867 e recebeu todo o reconhecimento de Paris, à época a grande capital da ópera europeia. Cortada e recortada diversas vezes, por razões artísticas e também logísticas – a plateia parisiense precisava sair a tempo de pegar o último trem de volta aos subúrbios – a ópera foi traduzida quando viajou para a Itália. Agora tem mais versões do que qualquer outra obra de Verdi.

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Alastrada, inquieta e meditativa, Don Carlos acabou perdendo a preferência do público e, quando voltou ao repertório, em meados do século 20, foi cantada quase exclusivamente em italiano. E quase sempre sem seu crucial primeiro ato, que conta o primeiro encontro de Carlos e Elisabeth na França — o momento de felicidade pelo qual passam o resto da ópera sofrendo — e seu desespero quando ela é chamada à Espanha para se casar com Felipe, pai de Carlos, acordo que faz parte de um tratado de paz.

Uma sombria e vigorosa montagem da versão francesa de cinco atos foi, ainda em 1996, destaque do mandato de Stéphane Lissner à frente do Théâtre du Châtelet. Diretor da Ópera de Paris desde 2014, Lissner agora está tentando recriar parte daquela mágica.  Essa nova adaptação inclui materiais que Verdi cortou na estreia parisiense e deixa de fora um corpo de balé comumente descartado nos dias de hoje, mas que era obrigatório na grande ópera do século 19.

Krzysztof Warlikowski, diretor do espetáculo, não fez mágica, mas sua produção é contida e bem pensada, decorosa sem ser fria. A obra foi atualizada do século 16 para, ao que parece, os anos 1940 ou 1950 – o palco está envolto em painéis de madeira escura – mas de maneira sutil e sem provocações. O objetivo não é distorcer o libreto, e sim adicionar toques do antigo glamour de Hollywood, com cenários e figurinos de Malgorzata Szczesniak e uma sensação de film noir.

O cinema, um dos temas recorrentes do trabalho de Warlikowski, é mais uma vez elemento-chave. O gabinete de Felipe é uma luxuosa sala em art déco; a onipresente nostalgia da ópera ecoa em marcas cintilantes de celuloide; projeções de close-ups capturam lágrimas congeladas no rosto de Elisabeth e Carlos apontando uma arma para a cabeça. (As locações da trama também são projetadas, como intertítulos de cinema mudo).

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A ênfase está na ilusão e na fantasia: os personagens insistem em ideias para salvar a si mesmos e aos outros, mas sempre fracassam. Na montagem de Warlikowski, até mesmo o encontro inicial de Elisabeth e Carlos na França é cauteloso, um pouco distante — de modo que as constantes referências a esse momento como a uma espécie de paraíso perdido parecem invocações de memórias falsas. Paredes aparentemente sólidas se abrem e se fecham; a iluminação, a cargo de Felice Ross, faz transformações quase invisíveis que mudam completamente o clima. Nada é confiável.

Até mesmo o gênero é questionado, de maneira muito espirituosa: primeiro vemos Eboli – a princesa que se apaixona por Carlos e dorme com Felipe, traindo quase todo mundo – como líder de uma corte de damas de companhia andróginas, vestidas em uniformes de esgrima. Depois ela passa a usar vestidos de furiosa mulher-fatal, com o cigarro onipresente.

A meio-soprano Elina Garanca, que interpreta Eboli pela primeira vez, nunca erra com sua voz suave e uniforme. Ela envolve habilmente os arabescos sensuais da Canção do Véu, sobe às notas mais altas, mas lhe falta plenitude nas mais baixas: o efeito de seu “Ô don fatal” foi uma ideia de equilíbrio e determinação, não uma força arrasadora.

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Abdrazakov cantou com solidez e presença, mas, assim como Garanca, careceu de certo impacto: seu incomum jovem Felipe contornou as profundidades psicológicas do papel. Mas Ludovic Tézier, com sua voz forte e elegante e seu rosto estranhamente pálido, capturou toda a intrigante ambiguidade de Rodrigue, que vacila entre a lealdade a Carlos ou a Felipe.

Kaufmann, tão natural nos papéis de outsider, faz com seu murmúrio triste um pano de fundo para Yoncheva mesclar clareza juvenil e vibração assombrada, com notas agudas que perfuram a névoa criada por ele. Inteligente, reservada e ferida, ela pareceu ensimesmada até em seu derramamento final, “Toi qui sus le néant” (“Você não sabia de nada”), a grande ária da resignação.

O coro – um mero sussurro no início, temível na cena do auto de fé – foi excelente. Philippe Jordan, diretor musical da Ópera de Paris, comandou uma performance leve e ágil, rápida, mas não apressada. Foi polido e profissional, mas não muito inspirado. Pouca sensação de correntes glaciais, de trevas sinistras, de riqueza aveludada. Em vez disso, um efeito calmo, refinado, contido. O que também foi muito francês. / Tradução de Renato Prelorentzou 

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