Escritas em sangue

Quanto da violência humana é realmente culpa das religiões? Em livro que sai no Brasil amanhã, a ex-freira e historiadora britânica Karen Armstrong, uma das mais populares e prolíficas escritoras sobre o tema, refuta a tese de que a fé no sagrado está por trás das principais guerras da humanidade. Antes, o contrário: “O melhor da religião é a capacidade de se opor à injustiça de Estado”

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Por Vitor Hugo Brandalise
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Está nos campanários, minaretes, torres de sinagogas. Sangue. Em nome da religião, rolam cabeças fiéis e infiéis desde a antiguidade, nas Cruzadas católicas, nas Guerras Religiosas (milhares de mortos nos séculos 16 e 17), nas ondas de assassinatos patrocinadas pela Al Qaeda e, mais recentemente, pelo Estado Islâmico em Paris e Bruxelas. Dizer que tudo isso é por Deus pode fazer barulho, especialmente quando o que se quer é relacionar fanatismo e fé. Mas há verdade nessa fala exagerada? Pode tanta guerra cair na conta da Bíblia, do Alcorão?

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Só se for no Alcorão for Dummies e, ainda assim numa interpretação errada, aponta a ex-freira e historiadora britânica Karen Armstrong, uma das mais populares e prolíficas escritoras sobre as religiões – autora, para começar, do best-seller mundial Uma História de Deus (1993). Depois do 11 de setembro, convidada a correr o mundo para explicar o Islã, e irritada com o mantra irresponsável de que “religiões são a principal causa das guerras”, ela decidiu seu novo tema. Quanto da violência dos homens é realmente culpa da religião?

É o que ela discute em seu último livro, Campos de Sangue – Religião e História da Violência (Companhia das Letras), resultado de 13 anos de pesquisas nas tradições do judaísmo, islã e cristianismo, e que será lançado no Brasil amanhã. “Os atos violentos dos Estados, sempre prontos a agredir, é que contaminam a religião. E não o contrário”, disse a escritora ao Aliás, em entrevista intermediada pelo evento Fronteiras do Pensamento, que em 2016 completa 10 anos no País (e do qual Armstrong participou em 2013). “O melhor momento de uma crença é quando se opõe à injustiça de Estado.”

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Com a mesma riqueza argumentativa que marca as 532 páginas do livro, Karen discute aqui passado e presente da relação da religião com a política, a ignorância com os textos sagrados (“lemos as escrituras com estupidez sem precedentes”), o Estado Islâmico (“religiosidade depravada”) e o pontificado de Francisco, de quem se diz “grande fã”. Trazendo a discussão ao país onde religião, assim como time de futebol, “não se discute”, Karen analisou a maciça invocação divina na votação do impeachment na Câmara. Não aliviou com os rogos religiosos numa casa laica. “Colocar Deus como alter ego, extensão de nossas imperfeições, incorre no mesmo erro que os terroristas cometem.”

Em Campos de Sangue, a sra. refuta a ideia de que a religião foi a principal causa das guerras e do terrorismo. Por que existe esse entendimento?

O mito da violência religiosa surgiu na Europa e na América do Norte no início da era moderna. Filósofos, como Thomas Hobbes e John Locke, e estadistas, como Thomas Jefferson e James Madison, estavam convencidos de que as Guerras Religiosas, nos séculos 16 e 17, nas quais pereceu um terço da população da Europa central, foram provocadas por disputas religiosas, e concluíram que a religião deveria ser excluída da vida pública. Embora as paixões religiosas estivessem envolvidas nesses conflitos, se o motivo fosse só essas divergências, não poderíamos encontrar católicos e protestantes do mesmo lado. Mas isso ocorria. Sempre vamos à guerra por múltiplas razões: econômicas, territoriais, políticas, ideológicas. As Guerras Religiosas eclodiram entre dois tipos de fundadores de Estados: os imperadores da Casa de Habsburgo, cujo objetivo era criar um império europeu como o otomano, e os príncipes alemães, que queriam criar fortes Estados soberanos no modelo de França e Grã-Bretanha – estes últimos prevaleceram. Nesses novos Estados o rei devia controlar o reino todo, e isso significava subjugar a Igreja, que passou a integrar esses Estados de mentalidade expansionista. Assim, o mito da violência religiosa está no próprio mito fundador do Estado liberal, pois forneceu embasamento ideológico para uma política secularizada, que separa religião e política.

A sra. escreveu que hoje, com países sempre preparados para a violência, tudo se contamina por agressões. A religião pode escapar disso?

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É preciso primeiro falar da nossa relação com a violência. Desde o início da civilização, guerras foram essenciais ao Estado. O Estado pré-moderno, com economia baseada em produtos agrícolas excedentes, exigia reduzida aristocracia, não mais de 5% da população. O resto cultivava a terra, sofria o confisco, e era obrigado à vida de subsistência. Sem esse sistema injusto, contam os historiadores, o homem teria permanecido num estado primitivo, pois isso possibilitou o surgimento de uma classe privilegiada com tempo livre para criar artes e ciências das quais dependeu nosso progresso. Mas isso só poderia ser obtido pela força bruta. E a única maneira de o Estado agrário aumentar suas receitas era conquistar mais terras. A guerra se tornou necessária à economia. Esse sistema persistiu até o surgimento do Estado industrializado nos séculos 18 e 19, com a produção de armas mais avançadas. Hoje, nenhum Estado, por pacífico que seja, pode dissolver seu exército. Os atos violentos dos Estados modernos, sempre prontos a agredir, contaminam a religião, e não o contrário. Desde a antiguidade, profetas se manifestaram contra a injustiça do Estado agrário. Os Profetas de Israel, Jesus e o profeta Maomé denunciaram a desigualdade de um sistema que marginalizava. Nos tempos modernos, Gandhi, Luther King e a Teologia da Libertação se opuseram à opressão em nome da religião. O melhor da religião aparece quando ela se opõe à injustiça de Estado, e não está comprometida com a violência estrutural.

Com a secularização se tornou possível apontar a influência da religião nos atos violentos?

Ficou mais claro que o que chamamos de violência religiosa tem sempre motivação política. O Estado secular liberal foi produto do início da era moderna, no século 18. Data daí um novo conceito de religião no Ocidente, que a considerava uma busca pessoal, separada da vida pública. Mas essa foi uma inovação liberal. Até então a religião nunca havia sido concebida como atividade à parte, desvinculada da política. O sagrado estava em tudo. Termos usados em outras línguas que traduzimos como “religião”, como “din”, em árabe, referem-se a um modo de vida. Antes, até 1700, separar a religião da política seria impossível – como tirar o gim de um coquetel. Eram inextricavelmente unidas. E isso não ocorria porque as pessoas fossem estúpidas para distinguir, mas porque o sofrimento humano e a injustiça são assuntos de importância sagrada.

A sra. diz que as sociedades serão cada vez mais laicas. Como vê a evolução até aqui?

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O secularismo é bom para a religião porque a liberta da violência inerente ao Estado. Mas é responsável pela horrível violência em sua breve história. Duas Guerras Mundiais foram lutadas não por religião, mas pelo nacionalismo secular. Houve o genocídio armênio, perpetrado pelos ateístas Jovens Turcos, e os Gulags de Stalin, de inspiração secular. O Holocausto mostrou as horríveis falhas do nacionalismo, com sua ênfase na etnia e cultura nacionais. E veja que, pelo menos, no Ocidente o secularismo foi conceito nosso. No mundo muçulmano ele foi imposto nos séculos 19 e 20, com crueldade, e caiu em descrédito. A Irmandade Muçulmana se radicalizou quando o presidente Nasser mandou milhares a campos de concentração nos anos 50, por distribuírem panfletos religiosos. Nas prisões o secularismo era visto como grande mal, e o fundamentalismo sunita nasceu ali.

Qual o papel da religião nos atentados do Estado Islâmico em Paris ou em Bruxelas?

De novo, uma combinação de política e religião. Os líderes do Estado Islâmico eram todos generais no exército disperso de Saddam Hussein. Eles são seculares, baathistas socialistas. No caso do Estado Islâmico, observamos a pior forma de secularismo e religiosidade depravada.

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É mais comum a interpretação equivocada dos livros sagrados, pelo viés da violência?

Como a política é sempre um elemento que faz parte do terrorismo articulado na religião, é fácil encontrar justificativas nas escrituras. A palavra jihad e derivados ocorre só 47 vezes no Alcorão, e só em 10 ela se refere à guerra. Muitos dos jihadistas têm conhecimento limitado do Alcorão. Dois jovens que deixaram a Grã-Bretanha para combater na Síria em 2014 encomendaram o livro Alcorão for Dummies. Isso me preocupa, então estou escrevendo um livro sobre a interpretação dos textos sagrados em todas as religiões. Hoje lemos as escrituras com um literalismo e estupidez sem precedentes.

Líderes religiosos podem minimizar a violência?

Sim, mas será preciso um ressurgimento. Pois, com a secularização agressiva, os clérigos regulares, que conhecem a complexidade do islã, foram marginalizados. Ficou um vazio espiritual, os muçulmanos foram privados da orientação instruída e incultos como Bin Laden se aproveitaram. Todo clérigo influente no mundo muçulmano, liberal ou salafista, denunciou energicamente o Estado Islâmico. E clérigos importantes condenaram o 11 de setembro.

A sra. fala de religião como instrumento pela paz. Quais exemplos podem inspirar nossa sociedade?

Vou citar um. Em hebraico, a palavra traduzida como “amor” é “hesed”: lealdade. Não significava amor emocional. Era um termo legal usado em tratados internacionais: dois reis, antes inimigos, prometeriam “amar-se” reciprocamente. Ou seja, se ajudariam, de forma prática, nas dificuldades. É esse amor que devemos dar aos chamados inimigos, por um mundo pacífico.

Qual sua opinião sobre o papa Francisco?

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Sou grande fã. Ele é um mestre do gesto, que fala de forma muito mais eloquente do que as doutas encíclicas. Mostra às pessoas como se comportar, em vez de dizer a elas o que pensar.

O Brasil passa por um processo de impeachment da presidente. Na Câmara, muitos deputados invocaram Deus ao votar. Como analisa isso? É muito fácil usar Deus para endossar nossos preconceitos e opiniões. Isso torna Deus apenas uma versão mais ampla de nossos seres imperfeitos. É péssima teologia. Isso não acontece na Grã-Bretanha, um país agressivamente secular, onde qualquer menção a Deus seria olhada com reprovação. O que também é ridículo. Deus é transcendência em si, e deveria desafiar todos os nossos preconceitos e opiniões. A tendência de colocar Deus como alter ego incorre no mesmo erro que os terroristas cometem.

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