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Escrito nas estrelas

Amizade por correspondência com Jorge Calife inspirou Arthur C. Clarke a fazer a seqüência de '2001: Uma Odisséia no Espaço'

Por Flavia Tavares
Atualização:

Jorge não podia ser astronauta. Nem sonhava com isso, como os outros garotos de sua idade. Tinha noção da delicadeza de sua saúde - quem poderia viajar para o espaço sofrendo de bronquite asmática? Mais tarde, ainda teria uma febre reumática que pioraria a situação. Ele compensava a fragilidade física com uma imaginação muito, muito fértil. Cultivada, ela lhe rendeu um atributo e tanto anos mais tarde. Jorge Luiz Calife, jornalista e escritor, escreveu o conto que inspirou a continuação do livro/filme 2001: Uma Odisséia no Espaço. E mais. Tornou-se amigo por correspondência de Arthur C. Clarke, o autor da ficção científica que revolucionou o modo como olhamos para cima, para o além. Clarke morreu no último dia 19. Jorge se lembra de, aos 3 anos de idade, no colo do pai, observar os aviões que sobrevoavam sua casa em Niterói, rumo ao Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro. Em 1957, aos 6 anos, o menino soube que os russos tinham lançado o satélite Sputnik. Desenvolveu, a partir daí, uma fissura por tudo que diz respeito a programas espaciais, espaçonaves, astronáutica. Ficou viciadinho em Flash Gordon. Arriscava-se até a escrever algumas histórias para o herói. Mocinho - quando já poderia ser chamado de Calife, em vez de Jorge -, descobriu a ficção científica "hard". Sim, há categorias: hard é aquela mais técnica, com termos quase exclusivos para astronautas. Soft é a que privilegia as relações entre terráqueos e extraterrestres. Calife é hard. Endureceu depois de ler um conto de Clarke, intitulado Quer Dizer Então que Você Vai para Marte?, publicado na revista Seleções. Era um roteiro de viagem para turistas que quisessem visitar o planeta vermelho. Quando já morava no Rio, Calife e seu pai foram ao Cine Roxy, em Copacabana, assistir a 2001: Uma Odisséia no Espaço. O ano era 1968, aquele tal que não acabou. O cartaz do filme prometia "te levar ao espaço" e entregava. Exibidas em 70 mm, numa tela de quase 180 graus, as imagens envolviam os espectadores. Calife viajou. Imagine só, o homem ainda não tinha pisado na Lua! Aliás, quando pisou, deu a Calife um dos momentos mais emocionantes de sua vida. Apesar do pai socialista, o jovem universitário não tomava partidos na corrida espacial. Não importava se eram russos ou americanos que davam um novo passo. Calife realmente acreditava no papo de que o passo era de toda a humanidade. Meio que de brincadeira, ele escreveu 2002, um conto que retomava a história de onde Clarke havia parado. No primeiro filme da saga, a tripulação da nave Discovery em sua missão a Júpiter desaparece, depois que o computador central, HAL 9000, tem um surto. No conto de Calife, uma nova missão parte em busca de respostas sobre o que aconteceu com os pioneiros - mas vai a Saturno, destino original da Discovery que não foi executado porque os efeitos especiais da época não eram suficientes para criar os anéis do planeta na tela. 2002 foi guardado na gaveta de Calife, que, a essa altura, já tinha largado o curso de engenharia e mudado para comunicação. Quando, em 1978, ficou sabendo que Clarke havia declarado que ia parar de escrever, não se conteve. Resumiu o conto e mandou com uma cartinha em que desafiava o ídolo: "Se eu posso fazer uma continuação do seu livro, você pode fazer coisa melhor". Sabia apenas que o escritor morava em Colombo, capital do Sri Lanka, num bairro chamado Cinamon Gardens. Não obteve resposta. Dois anos depois, o contato não tão imediato aconteceu. Numa carta datilografada (sua letra é quase ilegível) em um papel comprido, cheio de outras coisas escritas, Clarke dizia: "Obrigado por sua carta encantadora - estou tentado a enviá-la para o SK [Stanley Kubrick]. Nós falamos em fazer um outro filme há anos (não há chances. Ele não voa e eu não vou sair do Sri Lanka). Mas eu escrevi um resumo de um argumento (nada a ver com o 2001) para que ele parasse de me encher (...) Suas idéias sobre 2002 são bem boas. Desculpe, mas Fontes do Paraíso é meu último romance (...). Tudo de bom, Arthur C. Clarke. 29 de agosto de 1980." Começava ali uma troca de correspondência que duraria 20 anos. A freqüência não passava de duas cartas por ano. Clarke não gostava de responder missivas de amigos, quanto mais de fãs. Calife entrou no clube seleto e ficou quietinho sobre isso por algum tempo. "Não contava nem pras meninas, porque elas iam me achar esquisito." Possivelmente. Clarke mudou de idéia, afinal. Uma carta da editora do escritor britânico avisava Calife que ele não só voltaria a escrever como usaria algumas das idéias do brasileiro na continuação do épico. Por exemplo: o criador do HAL, dr. Chandra, iria acompanhar a missão a Júpiter (novamente Saturno ficava de fora). A tripulação teria uma astronauta mulher - no conto de Calife, elas eram comandantes e uma delas era sul-americana e se chamava Marcia Romero. Além disso, David Bowman, o astronauta que desaparece e se transforma em energia no primeiro livro, visita a Terra, como no texto do brasileiro. O jornalista não lucrou nem um centavo com as idéias que deu de presente ao ídolo. E diz que não gostaria de ter ganhado, acha que dinheiro dá trabalho. E dá uma gargalhada quando revela: "Clarke recebeu US$ 2 milhões de adiantamento para voltar a escrever. Foi isso que o convenceu, não minha cartinha." Só quando o livro 2010: Odisséia 2 foi lançado, com um agradecimento especial a Calife, o contato dos dois se tornou público. Uma reportagem no jornal da faculdade e o garoto asmático era agora uma celebridade. Ele se tornou um dos mais importantes autores de ficção científica do Brasil. Teve diversos contos e romances publicados. Ao todo, foram dez livros. Usa relatórios da Nasa como uma das fontes de inspiração. Escreveu também outras continuações de filmes e seriados, como uma possível seqüência de Mission to Mars, de Brian de Palma, chamada M2M2 (Mission to Mars Two), outra de Blade Runner e um episódio imaginário de Jornada nas Estrelas. Nas cartas entre os dois, primeiro eles trocaram idéias sobre 2010. Depois, os assuntos variavam. Em uma, o britânico dava dicas sobre autores interessantes para Calife ler. Numa outra, contava entusiasmado sobre a visita que recebera de Steven Spielberg e Harrison Ford, no Sri Lanka para filmar Indiana Jones e o Templo da Perdição, em 1983. Quando Calife lhe contou, em 88, que havia presenciado um "relâmpago esférico", fenômeno que intriga futuristas e cientistas, recebeu de volta uma carta doce, em que Clarke dizia que aquilo era fascinante e o animava depois de quatro meses de pneumonia. A saúde do escritor já estava frágil. A última correspondência de Clarke recebida pelo fã e amigo foi em 1998. Um jogo de videogame baseado em Encontro com Rama, um dos mais premiados romances de Clarke, havia sido lançado e o brasileiro havia chegado à última fase, mas não conseguia terminar. Contou a saga e recebeu a seguinte resposta: "Parabéns! Nem eu consegui chegar tão longe". A amizade começou com um elogio de Clarke a Calife. Terminou com outro. Neste ano, a editora Devir vai republicar a trilogia Padrões de Contato, de Calife. E, em 2009, lançará o primeiro romance dele, recusado por outros editores há 25 anos, agora reescrito. Angela conta a história de uma mulher de Saturno que visita a Terra e se apaixona por um brasileiro. Ela não é de Vênus e ele não é de Marte, mas são de mundos diferentes, a relação não dá certo. As casas flutuantes do romance são inspiradas em Arthur C. Clarke. Outra imagem criada pelo mentor que Calife adora: no livro da primeira odisséia, é descrito o efeito do sol poente em Saturno, com cristais de gelo formando uma chuva de granizo eternamente em órbita. Deve ser por isso que nosso hard-futurista não desiste desse planeta. Calife hoje mora em Pinheiral, cidade-satélite de Volta Redonda (RJ), embora viva um pouco no mundo da lua. Não tem celular nem carro - mas tem um computador em que gosta de jogar videogame. Usa uns óculos que parecem ter viajado no tempo, diretamente da década de 1970. Trabalha do Diário do Vale, de Volta Redonda, na seção de cultura, e não sabe bem quem é o prefeito. Gosta de morar na pequena cidade, porque, caminhando à noite, consegue ver, de soslaio, as Nuvens de Magalhães, duas galáxias anãs irregulares. E curte também passar à noite pela usina da Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, "porque ela fica parecendo aqueles cenários do Blade Runner". Seu sonho: ver o turismo espacial se tornar realidade. Talvez possa, enfim, visitar Saturno. CATEGORIAS Hard é a ficção mais técnica. A soft privilegia as ciências humanas. Calife é hard INSPIRAÇÃO "Clarke recebeu US$ 2 milhões para voltar a escrever. Foi isso que o convenceu" FUTURISTA Ele não tem celular ou carro. Mas tem um computador em que gosta de jogar videogame

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