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Escritor português Gonçalo Tavares funda mitologia para o século 21

'O século 21 está ficando avariado', acredita o escritor, que propõe uma maior ênfase à contemplação

Por Bruna Meneguetti
Atualização:

Teogonia é o primeiro livro de mitos que narram a origem dos deuses. Seu autor foi Hesíodo, nascido no século 8 a.C., e sua obra reflete como os mitos foram usados para explicar fenômenos naturais. Com os sofistas, porém, o mito perde sua importância, sendo considerado o antecessor do pensamento filosófico e, portanto, deixando de explicar o mundo. Mas é no livro Poética, de Aristóteles, que a palavra é retratada como sinônimo de “fábula”. Assim, não à toa, a ideia de algo mitológico nos remete ao passado e quando tentamos pensar nos mitos da atualidade sentimos como se tivéssemos perdido a capacidade de produzir algo que antes nos parecia tão natural e intrínseco.

O escritor português Gonçalo M. Tavares Foto: Joana Caiano/Dublinense

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Nesse sentido, o escritor português Gonçalo M. Tavares é corajoso ao escrever e chamar seus dois novos livros, publicados no Brasil pela Editora Dublinense, de “série mitológica”.O livro que abre suas mitologias, A Mulher-Sem-Cabeça e o Homem-do-Mau-Olhado, e o segundo publicado por aqui, Cinco Meninos, Cinco Ratos, não poderiam se encaixar em outra definição. Com personagens, além dos já citados nos títulos, como a Revolução, o Comboio, a Avestruz, o Povo-inteiro, os Homens-Com-a-Cabeça-Perto-do-Chão e Moscovo, Gonçalo entra definitivamente no terreno mitológico para trazer lampejos da história dos quatro últimos séculos. “Se houve alguma influência, tem a ver com esta ideia de pensar numa mitologia para o século 21. Pensei que de alguma maneira falta uma mitologia que introduza também a máquina”, afirma Gonçalo em entrevista ao Aliás

O escritor usa de cinco crianças (Alexandre, Olga, Maria, Tatiana e Anastácia, esta última sempre perdida) para conseguir atravessar as histórias dessas mitologias, como se os pequenos acompanhassem a narrativa, ou vice-versa. A escolha de seus nomes vêm dos cinco filhos do Czar Nicolau II, assassinado na revolução comunista. Juntos, os personagens criam nos livros uma estreita relação com a infância, que se reflete no modo de narrar. “Há a questão da lenga-lenga, que precisamente não tem grandes justificativas psicológicas”, informa Gonçalo.

É curioso notar que as crianças aparecem na narrativa justamente após revolucionários destruírem, “quase por completo”, a Casa-das-Máquinas da história mundial, deixando apenas uma para que, a partir dela, recomecem. É quase como se, com isto, esses mesmo homens bagunçassem a história real do mundo. Sobre esse mecanismo, Gonçalo brinca: “Passa um pouco a ideia de que há uma máquina qualquer que está no subterrâneo e que faz movimentar a história sem nós nos apercebemos. E eventualmente pensamos que estamos nós a fazer a história, ou a contribuir, mas pegaram uma máquina qualquer que está a trabalhar e a fazer mudar as coisas para a esquerda ou para a direita, ou para a frente”. 

A partir, e até antes disto, vamos tentando achar sentido no que é contado. A estrutura mítica passa a impressão de que cada elemento colocado no livro foi proposital. Porém, o autor adverte que é o contrário: “O simbolismo é quase uma linha direta. Esse tipo de coisa não me interessa de uma forma geral, nunca é uma coisa que está a simbolizar outra”, explica. Embora concorde que existem várias interpretações possíveis para a série mitológica, Gonçalo prefere ocultar as suas: “não tem nenhuma que seja mais consistente que a de qualquer leitor”. Mesmo assim, alguns personagens e situações são inevitáveis de se comparar quando pensamos na história recente mundial.  Por exemplo, nos parece clara a alusão do personagem Ber-lim com a divisão da cidade de mesmo nome por seu muro, durante a Guerra Fria. No livro, Ber-lim é retratado como um homem que ficou louco após entrar no Comboio, que andava numa velocidade extrema e o teria partido em dois. Outros episódios históricos também são narrados nos livros como se fossem lendas muito antigas, principalmente fatos que nos parecem espantosos até hoje, como a exibição do filme dos irmãos Lumière, a história do ex-guarda florestal Roy C. Sullivan — que foi atingido 7 vezes por relâmpagos, mas morreu suicidando-se — e Bryan Allen, um ciclista que conseguiu atravessar o Canal da Mancha usando um ciclo-avião movido a propulsão humana.

Para Gonçalo, nós estamos cada vez mais pobres dessas “histórias de espanto”, afirmação que também é a de Walter Benjamin, presente no final do primeiro livro da série. Segundo Benjamin, isso se deve a “nenhum acontecimento chegar até nós sem estar já impregnado de uma série de explicações”. E é justamente isso que Gonçalo tenta quebrar: “De repente, diante do espanto, temos que reagir de uma forma diferente, vamos nos revelar de uma maneira que nunca nos revelamos antes”, afirma. 

Talvez, por tentar trabalhar tanto a ideia do assombro, é que Gonçalo acaba caindo também no território da loucura. Outra clara alusão à história é o personagem Dr. Charcot, inspirado em um médico do século 19, nascido na França, professor de Sigmund Freud e considerado um dos fundadores da neurologia. Para Gonçalo, esse personagem foi uma tentativa de contar a história da loucura. “Enquanto escritor, é interessante estudar um pouco os limites do ser humano. Nós temos o órgão mais íntimo do nosso corpo, que é o cérebro. De repente, [ele] dá-nos ordens, diz palavras que não queríamos dizer. Isso é absolutamente espantoso… É como uma espécie de avaria, mas não é uma máquina que avaria à nossa frente, é uma máquina que avaria dentro de nós”. 

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Ainda sobre a loucura, a dado momento surge a personagem Avestruz, que come cérebros. A descrição do ato no primeiro livro é talvez a cena mais repulsiva e curiosa: “A Avestruz, depois de conseguir o mais difícil, essa fenda ligeira no crânio, na parte de trás da cabeça, mergulha o bico, com aqueles movimentos ondulatórios do pescoço, num trabalho obcecado, de operatório, doentio, que revela um apetite, uma ambição animal, uma vontade que vem já do cheiro do interior da cabeça”. No entanto, ela muito se assemelha ao Dr. Charcot, que começa a fazer as chamadas lobotomias e fica tão “fascinado com a sua própria técnica de operar” que atua sobre uma pessoa sã. “O que interessa é pôr a máquina em funcionamento. Portanto há aqui também essa máquina de curar, que muitas vezes se tornou violenta”, informa o escritor.

Outras alusões não são tão claras, como o personagem Moscovo que igualmente teve sua principal máquina avariada após entrar no temido Comboio. Mas o que significa no livro o fato de uma cidade estar no hospício? Segundo Gonçalo, classificar alguém como louco era um dos métodos usados por Stalin — que morreu justamente na mesma cidade — para eliminar adversários políticos. Outros elementos podem ser interpretados de diversas formas, como a Mulher-Sem-Cabeça, cuja história abre as mitologias: “— Como a cortaram? — pergunta o Filho-Mais-Velho. / — Quem a cortou? — pergunta o Filho-do-Meio. / — Porquê? — pergunta o Filho-Mais-Novo. / A mãe responde: — Com um machado. Foi o pai. Porque queria ter mais espaço na cama”. 

A personagem pode muito bem representar a violência masculina exercida sobre as mulheres, tocando em um debate atual. O fato de seu pescoço não parar de sangrar e os filhos procurarem-na enquanto limpam o sangue que caiu renderiam um ótimo terreno de análises para Clarissa Pinkola Estés, autora do clássico Mulheres que correm com os lobos. Embora claramente não fosse a intenção do autor, é nítida a existência de paralelos com temáticas de hoje em dia. Nesse aspecto, personagens como os Cem-Homens nos trazem reflexões sobre como tratamos as imigrações: “A fome é interrompida pelos estrangeiros que se recebem com hospitalidade e que depois são comidos. São os estrangeiros que matam a fome ao grupo da Caminhada-Muito-Extensa”. 

Questionado sobre a falta de nomes nos outros personagens que não são alusões às figuras históricas, Gonçalo volta à temática do estrangeiro e explica que os seres mitológicos são aqueles que “aterram” no mundo, que o narrador não conhece. “A única forma de identificar é dizer: ‘olha o Homem-Com-a-Boca-Aberta’, que é um pouco como nós falamos quando não sabemos o nome e quando, às vezes, são personagens que nos assustam. Se a pessoa tem a boca aberta, de repente parece que não há mais nada, como se eu deixasse de ser uma pessoa e passasse a ser uma boca”, comenta. 

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Por fim, além das máquina e da loucura, outra questão muito atual e presente é a da velocidade. No segundo livro, os Homens-Com-a-Cabeça-Perto-do-Chão não conseguem fugir da “caminhoneta” porque estão trancados pela “enorme velocidade que o condutor impunha”, um grande paralelo aos judeus levados para os campos de concentração. A Velocidade é também “um dos orgulhos do “Homem-Mais-Alto que lidera a Revolução”: “Era a arma, substituía tanques, aviões bombardeiros, máquinas complexas”. Já em dado momento, o personagem Moscovo adverte a outro:“É um comboio perigoso (...) Dizem que põe as pessoas loucas, que as pessoas perdem o juízo, que umas ficam cegas, outras nunca mais conseguem ouvir música”. 

Segundo Gonçalo, é como se existisse uma velocidade natural dos seres humanos e uma velocidade maior do que aquela que conseguimos entender. “Se temos essa velocidade é porque, de alguma maneira, estamos a arriscar ou a querer nos transformar em Deus. Acho que termos velocidade é nos aproximarmos da morte”. Ainda de acordo com ele a velocidade é inimiga da reflexão: “a filosofia é andar em círculos, cada vez mais fundo, mas sempre às voltas”, exemplifica citando o pensamento do filósofo Heidegger. Dessa forma, o escritor faz um alerta: estamos cada vez mais atraídos pela velocidade, como se ela fosse sempre positiva e a lentidão fosse o problema. “Voltar a valorizar o desvio me parece muito importante. Você fica com falta de reparar, que é um verbo muito bonito, porque é dar atenção, mas também tem o sentido de voltar a pôr em funcionamento. Eu acho que o século 21 está a ficar avariado, porque nós não reparamos nele, não estamos a ser suficientemente lentos”. 

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