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Escritora chilena Lina Meruane investiga a obsessão por doenças

O romance 'Sistema Nervoso', lançado recentemente no Brasil, usa o campo semântico da doença para investigar a realidade

Por Ronaldo Bressane
Atualização:

 Atenção: este livro é contraindicado para hipocondríacos. Doenças de todos os tipos atravessam um clã formado por uma filha astrofísica (Ela, a narradora), seu severo Pai médico, sua ambígua Mãe adotiva (a mãe biológica morreu no nascimento da narradora), seu irmão Primogênito rancoroso e seus belicosos e gordos irmãos Gêmeos. Se já nos inclinamos na direção da morte assim que nascemos, se o corpo é tudo o que existe e se pelo corpo passa toda a ficção, nossa história não passa de um histórico médico, sugere Lina Meruane

A escritora chilena Lina Meruane Foto: Daniel Mordzinski

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A premissa já existia no romance anterior da autora de 49 anos, que desde a estreia, saudada pelo compatriota Roberto Bolaño, se consolida como um dos principais nomes da literatura hispânica. Em Sangue no Olho (2012), uma escritora chilena morando em Nova York sofre de uma cegueira progressiva que vai inundando de sangue seus olhos, afastando-a do mundo, fazendo-a negar sua pátria natal (seu corpo natal) e entrando em conflito com o novo país e o namorado.

O corpo doente protagoniza ainda o romance Fruta Podrida (2007) e o ensaio Viajes Virales (2012), em que investiga o impacto da aids na América Latina. Como em Sangue no Olho, adotar uma patologia física para dar velocidade de thriller à narrativa – como diria o doutor Gregory House, o que seria um diagnóstico senão a solução de um crime? –, ao mesmo tempo que se usa o campo semântico da doença para investigar a realidade, são também os centros de gravidade deste Sistema Nervoso (trad. Sérgio Molina, Todavia, 238 págs.).

Os doentes familiares são uma obssessão para Ela, que não terminou sua tese de doutorado em Astrofísica (sobre buracos negros) mas ela esconde este fato do Pai, que lhe financiou os estudos (e com isso arruinou a família). Sem conseguir escrever, sonha em ganhar uma doença não muito grave para poder focar na escrita. Ela vive entre o país do presente (os EUA) e o país do passado (Chile) e se enrola entre as duas línguas, a que fala e a que escreve (muitos períodos são terminados com uma sucessão de imagens em itálico, como se fossem um raio-X de seu fluxo de consciência). Seu namorado, Ele, um antropólogo forense, se dedica a identificar ossos para combater a violência. No país passado, o país adoece de militarismo; no país presente, imigrantes ilegais lutam contra a xenofobia. Do micro ao macro, do pó dos ossos à poeira de estrelas, corpos humanos e galáxias distantes corroem-se mutuamente.

Mas corrosão seria uma imagem rasa para tratar o impacto da escrita de Meruane. Não-linear, o texto é um Frankenstein, cheio de fraturas e cicatrizes, cujo tempo avança para a frente e para trás, para cima, para baixo e para os lados – como um Big Bang, outra imagem possível para explicá-lo: o romance tem o ritmo de uma lenta entropia pós-explosão. O efeito permanente é de vertigem, náusea e certo nojo – bem, isso aqui não é auto-ajuda, como falar de doenças sem levar ao leitor o mal-estar? Assim, a forma do romance é toda constituída por retalhos, fragmentos como secções de um corpo humano – o livro seria então a metáfora de uma metástase de sinédoques, interligadas e sistematizadas pelo conceito físico da carnalidade: “Um cérebro como um livro aberto (...) não ser mais que sinapses era muito animal”. 

Há uma passagem, por exemplo, em que a Mãe passa por quimioterapia para tratar o câncer no seio – que será seccionado. Da quimio ao veneno, Meruane salta para outro fragmento memorialístico: o veneno aplicado aos ratos que viviam no sótão da casa da família. Por sua vez, a imagem dos ratos se relaciona a dois temas da ditadura chilena: os militantes assassinados eram chamados de ratos pela ditadura; e ratos vivos eram enfiados nas vaginas de militantes presas. O campo semântico dos ratos, seres que vivem e se movem nas penumbras, faz fronteira com o território de outro animal: o caranguejo – símbolo do câncer, doença que se move sorrateira por dentro e detrás dos órgãos, feito um artrópode por dentro da areia, subreptício, de lado, vagaroso e traiçoeiro. Esse tipo de associação de ideias e imagens aproxima a forma do romance do lirismo e do experimentalismo narrativo. Filhos do carbono e do amoníaco e afilhados de Augusto dos Anjos, só podemos aplaudir a riqueza e o estranhamento desse léxico. As investigações médicas são onipresentes e surgem frases de rara beleza: “A ressonância é o uivo cego da medicina. Um raio sonoro de imagens na impenetrável opacidade do corpo”.

Apesar de usar metáforas, o romance de Meruane nunca é metafórico. Ela corrobora da tese central de A Doença como Metáfora, de Susan Sontag, em que o uso literário das doenças acaba por se alastrar alegoricamente sobre os adoentados tornando-os vetores de culpas e pecados. Isso inexiste no universo de Meruane, onde tudo é doença – pois estar doente é estar vivo. “Não seríamos humanos sem experimentar as doenças”, disse Nietzsche. “Já que estamos com aids, pelo menos que se viva a doença com intensidade”, rebateria Jean-Claude Bernadet em seu A Doença, Uma Experiência. “A doença é um fragmento do real, um pedaço excluído de cada cultura – e o doente é seu ‘cavalo’, como se diz em umbanda: é por onde a doença conseguiu se manifestar”, escreveu Maria Rita Kehl em O Tempo e o Cão. Nesta época de medicalização extrema, em que tudo se pacifica à base de pílulas, somos ensinados a separar o mundos dos doentes e o dos saudáveis (e Cortázar já questionava essa fronteira no conto “A saúde dos doentes”). Meruane defende que estamos sempre doentes ou em vias de adoecer, apenas não sabemos como, quando e de quê: estaremos mais íntegros quanto mais conscientes de nossa própria destruição próxima, seja individual, seja como espécie. 

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Há outros subtemas neste estranho livro. Para além do passado na ditadura militar, o presente na ditadura econômica, do planeta doente refletindo-se no mal-estar humano (e vice-versa – não estamos destruindo a Terra neste exato momento, não seríamos nós o câncer da Terra?), o livro todo é sutilmente atravessado pela dinâmica pai-filha. Ela, uma astrofísica, é a negação do Pai, um médico, mas é ele quem a financia, e é ela quem cuida dele quando ele é internado – Meruane descreve com minúcia excruciante todos os ritos e rituais por que passamos quando caímos no kafkiano universo hospitalar. “Seu sistema nervoso guardava a memória falha torta inútil de um dano e continuava a revivê-lo, essa era uma explicação. Mas se ele tem memória, Ela pensa com excessiva lentidão, pensando em presente e talvez em outros tempos, se meu corpo tem memória, então também há de ter esquecimento”. Saber o que esquecer e o que lembrar, ao longo de todo o romance, vai virar um jogo de poder entre pai e filha – o qual ela só vence por deter a escrita dos acontecimentos. Mas, para escrever, tem de adoecer. A única cura para a literatura é a própria doença.

*Ronaldo Bressane é escritor e jornalista, autor do romance 'Escalpo' (Reformatório), entre outros

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